Cascata


Cascata

A creança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até choral-a e se desgostar quando se parte. A arte da creança é a de irrealizar. Bendita essa edade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reaes a cousas que o não são!

Que eu seja volvido creança e o fique sempre, sem que me importem os valôres que os homens dão às cousas nem as relações que os homens estabelecem entre ellas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E ha argumento algum, com geitos logicos para convencer, que me prove que os soldados reaes não devem andar de cabeça para baixo?

A creança não dá mais valôr ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? — A creança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios e todos os nossos odios e todos os nossos amores?

Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdade de cousas, que nós vestimos de /convenções/ no mais nu vel-as, que nos embrumamos de idéas nossas no mais directo olhal-as!

Será Deus uma creança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de creança travessa? Tão irreal, tão (...), tão (...)

Lancei-vos, rindo, esta idéa ao ar e vêde como ao vel-a distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ella é (Quem sabe se ella não contem a verdade?) E ella cahe e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de angustia...

Accordo para saber que existo...

Um grande tedio incerto gorgoleja [?] erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá ao fundo /estupido/ do jardim.


Título: Cascata
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 441
Página: 186 - 187
Nota: [5-6, ms.];