Anas&Barros - Usa Jacinto do Prado Coelho(13)

Prefiro a prosa ao verso


18-10-1931

Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda porém, é de todos, e não é — creio bem — uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido a valia da arte.

Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da musica para a prosa. Como a musica, o verso é limitado por leis rhythmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coacções, dispositivos automáticos de oppressão e castigo. Na prosa fallamos livres. Podemos incluir rhythmos musicaes, e comtudo pensar. Podemos incluir rhythmos poéticos, e comtudo estar fóra d'elles. Um rhythmo occasional de verso não estorva a prosa; um rhythmo occasional de prosa faz tropeçar o verso.

Na prosa se engloba a arte — em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a côr e a fórma, que a pintura não póde dar senão directamente, em elas mesmas, sem dimensão intima; o rhythmo, que a musica não póde dar senão directamente, nelle mesmo, sem corpo formal, nem aquelle segundo corpo que é a idéa; a estructura, que o architecto tem que formar de cousas duras, dadas, externas, e nós erguemos em rhythmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o esculptor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, emfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem occulta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.

Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixariamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmittindo em musica intelligivel de côr. Não fariamos esculptura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo mobil e o seu morno suave. Fariamos casas só para morar nellas, que é, emfim, o para que ellas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemonico, de auxiliar e inicial.

Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se reflectem, múrmuras, na prosa. Ha prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Ha rhythmos verbais que são bailados, em que a idea se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translucida e perfeita. E ha tambem na prosa subtilezas convulsas em que um grande actor, o Verbo, transmuda rhythmicamente em sua substancia corporea o mysterio impalpável do Universo.