Duas vezes, naquela minha adolescência


Duas vezes, naquela minha adolescência que sinto longínqua, e que, por assim senti-la, me parece uma coisa lida, um relato íntimo que me fizessem, gozei a dor da humilhação de amar. Do alto de hoje, olhando para trás, para esse passado, que já não sei designar nem como longínquo nem como recente, creio que foi bom que essa experiência da desilusão me acontecesse tão cedo.

Não foi nada, salvo o que passei comigo. No aspecto externo do assunto íntimo, legiões humanas de homens têm passado pelas mesmas torturas. Mas (...)

Cedo de mais obtive, por uma experiência, simultânea e conjunta, da sensibilidade e da inteligência, a noção de que a vida da imaginação, por mórbida que pareça, é contudo aquela que calha aos temperamentos como é o meu. As ficções da minha imaginação podem cansar, mas não doem nem humilham. Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias. Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.

São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma. Quando nos chegam, em torno a nós erra o sol e se perturbam as estrelas. Em toda a alma que sente chega o dia em que o Destino nela representa um apocalipse de angústia — um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desconsolação.

Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos — quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação!

Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro (...)


Título: Duas vezes, naquela minha adolescência
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 493
Página: 395 - 396
Nota: [5-50, dact.];