Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-56)

Declaração de Differença


Declaração de Differença.
(para ser inserta no Livro do Desassocego).

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As cousas do estado e da cidade não teem mão sobre
nós. Nada nos importa que os ministros e os au-
licos façam falsa gerencia das cousas da nação. Tudo isso
se passa lá fóra, como a lama nos dias de chuva. Nada te-
mos com isso, que tenha que ver ao mesmo tempo comnosco.

Semelhantemente nos não interessam as grandes convul-
sões, como a guerra e as crises dos paizes. Emquanto não
entram por nossa casa, nada nos importa a que
portas batam. Isto, que parece que se apoia num grande
desprezo pelos outros, realmente tem apenas por base o
nosso apreço sceptico por nós-proprios.

Não somos bondosos nem caritativos — não porque seja-
mos o contrario, mas porque não somos nem uma cousa, nem
a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras.
Tem para nós o interesse de um episodio passado em outras
almas, e com outras fórmas de pensar. Observamos, e nem
aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mistér é não
ser nada.

Seriamos anarchistas se tivessemos nascido nas clas-
ses que a si-proprias chamam desprotegidas, ou em outras
quaesquer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdade
nós somos, em geral, creaturas nascidas nos intersticios
das classes e das divisões sociaes — quasi sempre naquelle
espaço decadente entre a aristocracia e a (alta) burguezia,
o logar social dos genios e dos loucos com quem se pode
sympathisar.

A acção desorienta-nos, em parte por incompetencia
physica, ainda mais por inappetencia moral. Parece-nos im-
moral agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela
expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que
o fazem comprehensivel aos que o comprehen-
dem.

A nossa sympathia é grande pelo occultismo e pelas
artes do escondido. Não somos, porém, occultistas. Fa-
lha-nos para isso a vontade innata, e, ainda, a paciencia
para a educar de modo a tornar-se o perfeito instrumento
dos magos e dos magnetisadores. Mas sympathisamos com o
occultismo, sobretudo porque elle soe exprimir-se de modo


a que muitos que lêem, e mesmo muitos que julgam compre-
hender, nada comprehendem. É soberbamente superior essa
attitude mysteriosa. É, além d'isso, fonte copiosa de
sensações do mysterio e de terror: as larvas do astral,
os estranhos entes de corpos diversos que a magia ceremo-
nial evoca nos seus templos, as presenças desincarnadas
da materia d'este plano, que pairam em torno aos nossos
sentidos fechados, no silencio physico do som interior —
tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrivel,
no desabrigo e na escuridão.

Mas não sympathisamos com os occultistas na parte
em que elles são apostolos e amadores da humanidade; isso
os despe do seu mysterio. A unica razão para um occultista
funccionar no astral é sob a condição de o fazer por es-
thetica superior, e não para o sinistro fim de fazer bem
a qualquer pessoa.

Quasi sem o sabermos morde-nos uma sympathia
ancestral pela magia negra, pelas formas prohibidas da
sciencia transcendente, pelos Senhores do Poder que se ven-
deram á Condemnação e á Re incarnação degradada. Os nossos
olhos de debeis e de incertos perdem-se, com um cio femi-
nino, na theoria dos graus invertidos, nos ritos inversos,
na curva sinistra da hierarchia descendente.

Satan, sem que o queiramos, possue para nós uma sug-
gestão como que de macho para a femea. A serpente da In-
telligencia Material enroscou-se-nos no coração, como no
Caduceu symbolico do Deus que communica — Mercurio, senhor
da Comprehensão.


Aquelles de nós que não são pederastas desejariam ter
a coragem de o ser. Toda a inappetencia para a acção ine-
vitavelmente feminisa. Falhámos a nossa verdadeira profis-
são de donas-de-casa e de castellãs sem que fazer por um
transvio de sexo na incarnação presente. Embora não acre-
ditemos absolutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer
em nós como se o acreditassemos.

(from above) Tudo isto não é por maldade, mas por de-
bilidade apenas. Adoramos, a sós, o mal, não por elle ser
o mal, mas porque elle é mais intenso e forte que o Bem, e
tudo quanto é intenso e forte attrahe os nervos que deviam
ser de mulher. Pecca fortiter não pode ser comnosco, que
não temos fôrça, nem sequer a da intelligencia, que é a
que temos. Pensa em peccar fortemente — é o mais que para
nós pode valer essa indicação aguda. Mas nem mesmo isso ás
vezes nos é possivel: a propria vida interior tem uma rea-
lidade que ás vezes nos doe por ser uma realidade qualquer.
Haver leis para a associação de idéas, como para todas as
operações do espirito insulta a nossa indisciplina nativa.