Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 6-14)

Lento, no luar lá fóra da noite lenta


L. do D.

Lento, no luar lá fóra da noite lenta, o vento
agita coisas que fazem sombra a mexer. Não é talvez senão
a roupa que deixaram extendida no andar mais alto, mas
a sombra, em si, não conhece camisas e fluctua impalpavel
num accordo mudo com tudo.

Deixei abertas as portas da janella, para dispertar
cedo, mas até agora, e a noite é já tam velha que nada se
ouve, não pude deixar-me ao somno nem estar dis-
perto bem. Um luar está para além das sombras do meu quar-
to, mas não passa pela janella. Existe, como um dia de pra-
ta ôca, e os telhados do predio fronteiro, que vejo da cama,
são liquidos de brancura ennegrecida. Como parabens do
alto a quem não ouve, ha uma paz triste na luz dura da lua.

E sem ver, sem pensar, olhos fechados já sobre o somno
ausente, medito com que palavras verdadeiras se poderá de-
screver um luar. Os antigos diriam que o luar é branco, ou
que é de prata. Mas a brancura falsa do luar é de muitas cores.
Se me erguesse da cama, e visse por traz dos vidros frios,
sei bem que, no alto ar isolado, o luar é de branco cin-
zento azulado de amarello esbatido; que, sobre os telhados
varios, em desequilibrios de negrume de uns pa-
ra outros, ora doura de branco preto os predios submissos,
ora alaga de uma cor sem cor o encarnado
castanho das telhas altas. No fundo da rua, a-
bysmo placido, onde as pedras nuas se arredondam irregular-
mente, não tem cor salvo um azul que vem talvez do cinzento
das pedras. Ao fundo do horizonte será quasi de azul es-
curo, differente do azul negro do céu ao fundo. Nas janellas
onde bate, é de amarello negro.

De aqui, da cama, se abro os olhos que teem o somno
que não tenho, é um ar de neve tornada côr onde boiam
filamentos de madreperola morna. E, se o sinto penso com o que sin-
to, é um tedio tornado sombra branca, escurecendo como se
olhos se fechassem sobre essa indistincta brancura.