Sinto o tempo com uma dôr enorme


        L. do D

Sinto o tempo com uma dôr enorme.
É sempre com uma commoção
exaggerada que abandono qualquér
cousa. O pobre quarto-alugado onde
passei uns mezes, a mesa do hotel
de provincia onde passei seis dias, a propria
triste sala de espera da estação
de caminho de ferro onde gastei duas horas
á espera do comboio — sim, mas
as cousas boas da vida, quando as
abandono e penso, com toda a
sensibilidade dos meus nervos, que
nunca mais as verei e as terei,
pelo menos naquelle preciso e exacto
momento, doem-me metaphysicamente.
Abre-se-me um abysmo na alma
e um sopro frio da hora de Deus
roça-me pela face livida.

O tempo! O passado! Aí
algo, uma voz, um canto, um
perfume occasional levanta em minha
alma o panno de bôca das minhas
recordações… Aquillo que fui e


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nunca mais serei! Aquillo que
tive, e não tornarei a ter! Os
mortos! Os mortos que me
amaram na minha infancia.
Quando os evóco toda a alma
me esfria e eu sinto-me des-
terrado de corações, sósinho na
noite de mim-proprio, chorando como
um mendigo o silencio fechado
de todas as portas.


Identificação: bn-acpc-e-e3-5-1-85_0102_51_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-5-1-85_0103_51v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (21.4cm X 13.3cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta roxa.
Data: 01-01-1915 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de meia folha.
Fac-símiles: BNP/E3, 5-76-77.1 , BNP/E3, 5-76-77.2