Quando o estio entra entristeço


L. do D.

Quando o estio entra entristeço. Parece que a
luminosidade, ainda que acre, das horas estivaes devera
acarinhar quem não sabe quem é. Mas não, a mim
não me acarinha. Ha um contraste demasiado entre a vida
externa que exhubera e o que sinto e penso, sem saber sen-
tir nem pensar — o cadaver perennemente insepulto das
minhas sensações. Tenho a impressão de que vivo, nesta
patria informe chamada o universo, sob uma tyrannia poli-
tica que, ainda que me não opprima directamente, todavia
offende qualquer occulto principio da minha alma. E en-
tão desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade anti-
cipada do exilio impossivel.

Tenho principalmente somno. Não um somno que
traz latente, como todos os somnos, ainda os morbidos, o
privilegio physico do socego. Não um somno que, porque
vae esquecer a vida, e porventura trazer sonhos, traz na
bandeja com que nos vem até à alma as offerendas placidas
de uma grande abdicação. Não: este é um somno que não
consegue dormir, que pesa nas palpebras sem as fechar,
que junta num gesto que se sente ser de estupidez e re-
pulsa as commissuras sentidas dos beiços descrentes. Es-
te é um somno como o que pesa tortura inutilmente / sobre / o corpo
nas grandes insomnias da alma.

Só quando vem a noite, de algum modo sinto, não
uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos se-
rem contentes, se sente contente por analogia dos senti-
dos. Então o somno passa, a confusão do lusco-fusco men-
tal, que esse somno dera, esbate-se, esclarece-se, quasi
se illumina. Vem, um momento, a esperança de outras coi-
sas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tedio
sem somno nem esperança, o mau dispertar de quem
não chegou a dormir. E da janella do meu quarto fito,
pobre alma cansada de corpo, muitas estrellas; muitas es-
trellas, nada, o nada, mas muitas tantas estrellas...


                              9-6-1934.


Identificação: bn-acpc-e-e3-6-1-17_0029_15_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.8cm X 21.5cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta, com revisões manuscritas a lápis.
Data: 09-06-1934
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira. Incluído na "Introdução Geral" de Maria Alice Galhoz à "Obra Poética" (1960) de Fernando Pessoa. No verso existem alguns cálculos manuscritos e riscados a lápis. O único apontamento não riscado é "Q.A. (A. Th) | 7,32 | 3-XI-1934"
Fac-símiles: BNP/E3, 6-15.1 , BNP/E3, 6-15.2