Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 6-13)

Pertenço a uma geração que herdou a descrença


L. do D.

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé
christan (no facto christão) e que creou em si uma descrença em
todas as outras fés. Os nossos paes tinham ainda o impulso credor,
que transferiam do christianismo para outras formas da illusão.
Uns eram enthusiastas da egualdade social, outros eram enamorados
só da belleza, outros tinham a fé na sciencia e nos seus proveitos,
e havia outros que, mais christãos ainda, iam buscar a Orientes e
occidentes outras fórmas religiosas, com que entretivessem a con-
sciencia, sem ellas ôca, de meramente viver.

Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos
orphãos. Cada civilização segue a linha intima de uma religião
que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e
por fim perdel-as a todas.

Nós perdemos essa, e ás outras tambem.

Ficámos, pois, cada um entregue a si-proprio, na desolação
de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é na-
vegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós
encontrámo-nos navegando, sem a idéa do porto a que nos deveria-
mos acolher. Reproduzimos assim, na especie dolorosa, a formula
aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.

Sem illusões, vivemos apenas do sonho, que é a illusão de
quem não pode ter illusões. Vivendo de nós proprios, diminuimo-
nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não
temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não
tendo uma idéa do futuro, tambem não temos uma idéa de hoje, por-
que o hoje, para o homem de acção, não é senão um prologo do futu-
ro. A energia para luctar nasceu morta comnosco, porque nós nasce-
mos sem o enthusiasmo da lucta.

Uns de nós stagnaram na conquista alvar do quotidiano,
reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtel-o sem
o trabalho sentido, sem a consciencia do esforço, sem a nobreza
do conseguimento.


Outros, de melhor stirpe, abstivemo-nos da cousa publica,
nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvario
do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossivel
esforço, em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem di-
vina na consciencia.

Outros entregaram-se, atarefados por fóra da alma, ao culto
da confusão e do ruido, julgando viver quando se ouviam, crendo
amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doia-
nos, porque sabiamos que estavamos vivos; morrer não nos aterrava
porque tinhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros, Raça do Fim, limite spiritual da Hora Morta,
nem tiveram a coragem da negação e do asylo em si-proprios. O que
viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas
vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no
genero de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro
muros de não saber agir.