Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 7-5-6-7-8-9-10)

Nunca deixo saber


L. do D.

Nunca deixo saber
aos ás meus minhas sentimentos sensações
o que lhes vou fazer
sentir... Brinco com
as minhas sensações
como uma princeza
cheia de tedio com
os seus grandes gatos
promptos e crueis...

Fecho subitamente portas dentro
de mim, por onde
certas sensações
iam passar para
se realizarem. Retiro
bruscamente do
seu caminho os
objectos espirituaes
que lhes vão vin-
car certos gestos.

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        ─────

Pequenas phrases sem
sentido, metidas nas
conversas que suppomos
estar tendo; affirmações absurdas
feitas com cinzas de outras
que já de si não significam
nada.


— O seu olhar tem qualquér
cousa de musica tocada
a bordo d'um barco, no meio
mysterioso de um rio com
florestas na margem op-
posta...

= Não diga que é por
uma noite de luar.
Abomino as noites
de luar... Ha quem
costume realmente tocar musica
nas noites
de luar...

— Isso tambem é possi-
vel... E é lamentavel,
está claro... Mas o
seu olhar tem realmente
o desejo de ser saudoso
de qualquér cousa...
Falta-lhe o sentimento
que exprime... Acho
na falsidade da sua
expressão uma quan-
tidade de illusões
que tenho tido...

= Creia que sinto ás
vezes o que digo, e
até, apesar de mulher,
o que digo com
o olhar...


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— Não está sendo cruel
para comsigo propria?
Nós sentimos realmente
o que pensamos que
estamos sentindo? Esta
nossa conversa, por exem-
plo, tem visos de realidade?
Não tem. N'um romance
não seria admittida.

= Com muita razão... Eu
não tenho a absoluta
certeza de estar fallando
comsigo, repare... Apesar
de mulher, criei-me
um dever de ser es-
tampa de um livro
de impressões de um
desenhista doido... Tenho
em mim detalhes exag-
geradamente nitidos... Da
um pouco, bem sei, a
impressão de realidade
excessiva e um pouco
forçada... Acho que
a unica cousa digna
de uma mulher con-
temporanea é este ideal
de ser estampa. Quando
eu era creança


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queria ser a rainha d'um
naipe qualquer n'um
baralho de cartas antigo
que havia em minha
casa... Achava esse mister
de uma heraldica real-
mente compassiva...
Mas quando se é
creança, tem-se
aspirações moraes
d'estas... Só depois,
na edade em que as
nossas aspirações
são todas immoraes,
é que pensamos n'isso
a serio...

— Eu como nunca
fallo olho a para creanças, creio
no instinto artista
d'ellas... Sabe, en-
quanto estou fallando,
agora mesmo, eu estou
querendo penetrar o
intimo sentido d'essas
cousas que me estava
dizendo... Perdoa-me?

= Não de todo... Nunca
se deve devassar os
sentimentos que os outros
fingem que teem.


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São sempre demasiada-
mente intimos... A-
credite que me dóe real-
mente estar-lhe fazendo
estas confidencias intimas,
que, se bem que todas ellas
falsas, representam
verdadeiros farrapos
da minha pobre alma...
No fundo, acredite, o
que somos de mais
doloroso é o que
não somos realmente,
e as nossas maiores
tragedias passam-se
na nossa idéa de idea que fazemos de
nós nós.

— Isso é tão verdadeiro...
Para que dizel-o? Feriu-me.
Para que tirar á nossa
conversa a sua irreali-
dade constante?...
Assim é quasi uma
conversa possivel,
passada a uma
meza de chá,

entre uma mulher
linda e um ima-
ginador de sensações.

= Sim, sim... É a
minha vez de


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pedir perdão... Mas olhe
que eu estava distrahida
e não reparei realmente
em que tinha dito uma
cousa justa... Mudemos
de assumpto... Que tarde
que é sempre!... Não
se torne a zangar... Olhe
que esta minha phrase
não tem sentido abso-
lutamente nenhum...

— Não me peça desculpas,
não repare em que
estamos fallando... Toda
a boa conversa deve
ser um monologo de dois...
Devemos, no fim, não
poder ter a certeza se
conversámos realmente
com alguem ou se ima-
ginámos totalmente
a conversa... As
melhores mais deliciosas e as mais
intimas conversas, e sobretudo as
menos moralmente ins-
tructivas, são aquellas
que os romancistas
teem entre duas perso-
nagens das suas
novellas... Como
exemplo...

= Por amôr de Deus!
Não ia decerto
citar-me
um


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exemplo... Isso só se
faz nas grammaticas; não
sei se se recorda que ate nem
nunca as lemos .

— Leu alguma vez uma grammatica?

= Eu nunca. Tive sempre
uma aversão profunda
a saber como se dizem
as cousas... A minha
unica sympathia, nas
grammaticas, ia para
as excepções e para
os pleonasmos... Es-
capar ás regras e dizer
cousas inuteis resume
bem a attitude essen-
cialmente moderna.
Não é assim que se diz?...

— Absolutamente... O que ha
de antipathico nas
grammaticas (já reparou
na deliciosa impossibilidade
de estarmos fallando n'este
assumpto?) — o que é mais ha de
mais antipathico nas
grammaticas é o verbo,
os verbos... São as
palavras que
dão sentido ás


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phrases... Uma phrase
honesta deve sempre poder
ter varios sentidos...
Os verbos!... Um amigo
meu que se suicidou
— cada vez que tenho uma
conversa um pouco longa
suicido um amigo -
tinha tencionado dedicar toda
a sua vida a destruir
os verbos...

= (Elle porque se suicidou?)

— Espere, ainda não sei...
Elle pretendia descobrir e
fixar o modo de não
completar as phrases
sem parecer fazel-o. Elle
costumava dizer-me
que prócurava o microbio
da significação... Suici-
dou-se, é claro, porque um
dia reparou na responsa-
bilidade immensa que
tomára sobre si...
A importancia do problema,
deu-lhe cabo do cerebro...
Um revolver e...

= Ah, não... Isso de modo
algum... Não vê que
não podia ser um
revolver?...


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Um homem d'esses nunca dá
um tiro na cabeça... O
senhor pouco se entende
com os amigos que nunca
teve... É um defeito
grande, sabe?... A minha
melhor amiga — uma
[ deliciosa ] rapaz que eu
inventei...

— Dão-se bem?

= Tanto quanto é possivel...
Mas essa rapariga, não
imagina,


As duas creaturas que
estavam á meza de chá
não tiveram com certeza
esta conversa. Mas estavam
tão alinhadas e bem vestidas
que era pena que não
fallassem assim... Porisso es-
crevi esta conversa para
ellas a terem tido... As
suas attitudes, os seus pequenos
gestos, as suas criancices
de olhares e sorrisos nos
momentos de conversa que
abrem intervallos no sentimento
de existirmos existencia, disseram
nitidamente o que fiel-
mente finjo que repórto... Quando
elles um dia fôrem ambos
e sem duvida casados cada
um para seu lado — em
intentos de mais juntos,
para poderem casar um com
o outro -, se elles por
acaso olharem para estas
paginas, acredito que re-
conhecerão o que nunca
disseram e que não
deixarão de me ser gratos
por eu ter interpretado tão
bem, não só o que elles são
realmente, mas o que
elles nunca desejaram
ser nem
sabiam que eram...


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Elles, se me lêrem, acre-
ditem que foi isto
que realmente disseram.
Na conversa apparente
que elles escutaram um
ao outro faltavam tantas
cousas que       — faltou
o perfume da hora, o aroma
do chá, a significação para
o caso do ramo de
      que ella tinha ao
peito... Tudo isso, que
assim formou parte da
conversa, elles se es-
quecem de dizer... Mas
tudo isto lá estava e
o que eu faço é, mais
do que um trabalho literario,
um trabalho de historiador.
Reconstrúo, completando...
e isso me servirá de desculpa
junto d'elles, de ter estado
tão fixamente a escutar-
lhes o que não diziam e
não queriam dizer
podiam deixar de
vir a ter dito.


L. do D.

Sens. nascem analysadas

Requinte entre a sens. e a c d'ella, não
entre a sens. e o "facto".

Regra de vida: submetter-se a tudo servil.
O casamento bom porque artificial. — O
artificio e o absurdo é o signal do
humano.