Artifices da morbidez


Artifices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desilludir-se [sic]. Curiosos da vida espreitemos a todos os muros, antecançados de saber que não vamos vêr nada /de novo ou bello/.

Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas — mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhámos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas côr de cinza para os gestos que apenas sonhámos, mortalhas imperiais-de-purpura para as nossas sensações inuteis.

Pelos montados e pelos valles e pelas margens (...) dos (...) pantanos, caçam caçadores o lobo e a corça (...) e o pato bravo também. Odiemol-os, não por que caçam, mas porque gosam (e nós não gosamos).

Seja a expressão do nosso rosto um sorriso pallido, como de alguem que vae chorar, um olhar vago, como de alguem que não quer vêr, um desdem esparso por todas as feições, como o de alguem que despreza a vida e a vive apenas para ter que desprezar.

E seja o nosso desprezo para os que trabalham e luctam e o nosso odio para os que esperam e confiam.

(Fim)


Título: Artifices da morbidez
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 366
Página: 106
Nota: [9-42, ms.];