Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(96)

A tragedia principal da minha vida


L. do D.

A tragedia principal da minha vida é, como todas as tragedias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condemnação; repugno o sonho como uma libertação ignobil. Mas vivo o mais sordido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas miserias em um corpo só.

Sim vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relampagos da razão destacam do negrume da vida os objectos proximos que nol-a formam, o que ha de vil, de lasso, de deixado e facticio, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escriptorio sordido até á sua medulla de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias eguaes, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no scenario, e o scenario estivesse às avessas...

Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominal-o ou repudial-o, e eu nem o domino, porque o não excedo a dentro do real, nem o repudio porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquelle lixo da alma que os outros teem só no somno, na figura da morte com que resonam, na calma com que parecem vegetaes progredidos!

Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas a dentro, nem um desejo inutil que não seja deveras inutil!

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquellas palavras: "Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!" Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assumpção até à Rua da Victoria; é o César de um quarteirão. Eu superior a elle? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam d'elle condignamente.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relogio publico parado.

Aquella sensibilidade tenue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu previlegio de penumbra