Chapter on Indifference


Livro do Desassocego.

(Chapter on Indifference or something like that)

Toda a alma digna de si-propria deseja viver a
vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão
é proprio dos escravos. Pedir mais é proprio das crean-
ças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque to-
da a conquista é.........

Viver a vida em Extremo significa vivel-a até ao
limite, mas ha trez maneiras de o fazer, e a cada alma
elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se
a vida em extremo pela posse extrema d'ella, pela via-
gem ulysséa atravez de todas as sensações vividas, atra-
vez de todas as fórmas de energia exteriorisada. Raros,
porém, são, em todas as epochas do mundo, os que podem
fechar os olhos cheios do cansaço somma de todos os can-
saços, os que possuiram tudo de todas as maneiras.

Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o,
que ella se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser
ciumentos d'ella por saber ter-lhe o amor inteiramente.
Mas este deve ser, sem duvida, o desejo de toda a alma
elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que
lhe [é] impossivel tal realização, que não tem fôrças para a
conquista de todas as partes do Todo,
tem dois outros caminhos que siga — um, a abdicação in-
teira, a abstenção formal, completa, relegando para a
esphera da sensibilidade aquillo que não pode possuir
integralmente na região da actividade e da energia. Mais
vale supremamente não agir que agir inutilmente, frag-
mentariamente, imbastantemente, como a innumera super-
flua maioria inane dos homens; outro, o caminho do per-
feito equilibrio, a busca do Limite na Proporção Absoluta,
por onde a ansia de Extremo passa da vontade e da emoção
para a Intelligencia, sendo toda a ambição não de viver
toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar
toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação in-
telligente.

A ansia de comprehender, que para tantas almas no-
bres substitue a de agir, pertence á sphera da sensibi-
lidade. Substituir a Intelligencia á energia, quebrar o
élo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse
todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido,
vale mais que a vida, tão difficil de possuir completa,
e tão triste de possuir parcial.

Diziam os argonautas que navegar é pre-
ciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da
sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas
que não é preciso viver.


Identificação: bn-acpc-e-e3-7-1-50_0039_20_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (21.4cm X 19.4cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (violet-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta roxa, com a indicação "Livro do Desasocego" e título datilografados a vermelho.
Data: 1916 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira, com timbre "F.A. PESSOA | RUA DO OURO, 87, 2º | LISBOA", e com marca de água "BRITISH BANKPOST". Folha ligeiramente rasgada na margem do lado direito. Segundo Pizarro, no último parágrafo figura uma frase (cf. "navegar é preciso […] viver não é preciso"), cuja fonte foi descoberta por Maria Aliete Galhoz nas "Vidas Paralelas" de Plutarco — ver a Obra Poética de Aguilar — e que Pessoa “terá descoberto […] num artigo de Joseph Addison publicado na revista 'The Spectator' (n.º 507, de 11 de Outubro de 1712) e incluído numa colectânea que Pessoa possuía”; a colectânea a que se refere R. Zenith, em Livro do Desassossego (2009:509), é o terceiro volume da classe 8 (Língua — Linguística — Literatura) da Biblioteca particular do escritor: Joseph Addison e Richard Steele, The Spectator. Introduction, notes and index by Henry Morley. New Edition. London, Manchester and New York: George Routledge and Sons, Limited, 1896. Na página 723 lê-se: 'When Pompey was desired not to set Sail in a Tempest that would hazard his Life [Quoted from Plutarch's Life, §50]'".
Fac-símiles: BNP/E3, 7-20r.1