Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 7-40r)

A liberdade é a possibilidade do isolamento


Livro do Desasocego.

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre
se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a pro-
cural-os a necessidade do dinheiro, ou a necessidade grega-
ria, ou o amor, ou a gloria, ou a curiosidade, que no silen-
cio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossivel
viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do
espirito, todas da alma; és um escravo nobre, ou um servo
intelligente: não és livre. E não está comtigo a tragedia,
porque a tragedia de nasceres assim não é comtigo, mas do
Destino para si sòmente. Ai de ti, porém, se a oppressão
da vida, ella-propria te força a seres escravo. Ai de ti,
se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de
te separares, a penuria te fórça a conviveres. Essa, sim,
é a tua tragedia, e a que trazes comtigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz
o hermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo,
que se bastam pela força, mas não pelo desprezo d'ella.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar
de outrem. O pobre escravo vê-se livre á força dos seus pra-
zeres, das suas maguas, da sua vida desejada e contínua.
Vê-se livre o rei dos seus dominios, que não queria deixar.
As que espalharam amor vêem-se livres dos triumphos que ado-
ram. Os que venceram vêem-se livres das victorias para que
a sua vida se fadou.

Porisso a morte ennobrece, veste de galas desconheci-
das o pobre corpo absurdo. É que alli está um liberto, em-
bora o não quizesse ser. É que alli não está um escravo, em-
bora elle chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja
maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risivel como
homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser dis-
forme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janellas; exclúo o
mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser
escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguem, rece-
oso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me,
tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excel-
sis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me op-
prime. Não me dóe senão ter-me doido.