Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 8-8)

Ecloga de Pedro


Pastoral Ecloga de Pedro

Não sei onde te vi nem quando. Não sei se
foi n'um quadro ou se foi no campo real, ao
pé de arvores e hervas contemporaneas do corpo;
foi n'um quadro talvez, tão idyllica e legivel
é a memoria que de ti conservo. Nem sei
quando isto [se] passou, ou se se passou realmente —
porque póde ser que nem em quadro eu te visse —,
mas sei com todo o sentimento da minha intelligencia
que esse foi o momento mais calmo da minha
vida.

Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi
manso e enorme, calmos pelo risco largo da
estrada. Desde longe — parece-me — eu vos te vi, e
viestes vieste até mim e passastes passaste. Pareceste não
reparar na minha presença. Ias lenta e
guardadora descuidada do boi grande. O teu
olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma
grande clareira de vida de alma; abandonara-te
a consciencia de ti propria. N'esse momento
nada mais eras do que um

Vendo-te recordei que as cidades mudam mas
os campos são eternos. Chamam biblicas às
pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo
modo que os dos tempos biblicos deviam ter sido.

É no recorte passageiro da tua figura anonyma
que eu ponho toda a evocação dos campos, e a
calma toda que eu nunca tive chega-me á alma


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quando penso em ti.
O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular
incerto, em cada gesto teu pensava uma ave a idea d'uma ave [cada gesto teu pensava n'uma ave onda]; tinhas
trepadeiras invisiveis enroscadas no           do teu
busto. O teu silencio — era o cahir da tarde
e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas
encostas pallidas da hora — o teu silencio era
o canto do ultimo pegureiro que, por esquecido de
uma ecloga nunca escripta de Virgilio, ficou
eternamente não-cantado incantado, e eterna nos campos,
silhueta. Era possivel que estivesses sorrindo;
para ti apenas, para a tua alma, vendo-te
a ti na tua idea, a sorrir. Mas os teus labios
eram calmos como o recorte dos montes; e
o gesto, que deslembro, de tuas mãos rusticas engrinaldado
com flores do campo.

Foi n'um quadro, sim, que te vi. Mas d'onde
me vem esta idea de que te vi approximares-te
e passares por mim e eu seguir, não me voltando
para traz por te estar vendo sempre e ainda? Estaca
o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te
quando te quero collocar na vida — ou na
semelhança da vida.