Nenhum premio certo


Nenhum premio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o peccado. Nem seria justo que houvesse tal premio ou tal castigo. Virtude ou peccado são manifestações inevitaveis de organismos condemnados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Porisso todas as religiões collocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma sciencia pode dar noticia, de que nenhuma fé pode transmittir a visão.

Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preoccupação de influir em outrem.

A vida, disse Tarde, é a busca do impossivel atravez do inutil. Busquemos sempre o impossivel, porque tal é o nosso fado; busquemol-o atravez do inutil, porque não passa caminho por outro poncto; ascendamos, porém, á consciencia de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.

Cansamo-nos de tudo, excepto de comprehender, disse o scholiasta. Comprehendamos, comprehendamos sempre, e façamos por tecer astuciosamente, capellas ou grinaldas que hão de murchar tambem, as flores espectraes d'essa comprehensão.


Título: Nenhum premio certo
Heterónimo: Não atribuído
Número: 535
Página: 492 - 493
Nota: [15(5)-14r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, integrado no conjunto "Textos sem destinação certa inventariados fora do núcleo" (2010: 490-516).