Dividiu Aristoteles a poesia


Dividiu Aristoteles a poesia em lyrica, elegiaca, epica e dramatica. Como todas as classificações bem pensadas, é esta util e clara; como todas as classificações, é falsa. Os generos não se separam com tanta facilidade intima, e, se analysarmos bem aquillo de que se compõem, verificaremos que da poesia lyrica à dramatica ha uma gradação continua. Com effeito, e indo às mesmas origens da poesia dramatica — Eschylo, por exemplo —, será mais certo dizer que encontramos poesia lyrica posta na bocca de diversos personagens.

O primeiro grau da poesia lyrica é aquelle em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se elle, porém, fôr uma creatura de sentimentos variaveis e varios, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas sòmente pelo estylo. Um passo mais, na escala poetica, e temos o poeta que é uma creatura de sentimentos varios e ficticios, mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela intelligencia que pela emoção. Este poeta exprimir-se-ha como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estylo, pois que o temperamento está substituido pela imaginação, e o sentimento pela intelligencia, mas tamsòmente pelo simples estylo. Outro passo, na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentaes varios se integra de tal modo nelle que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analyticamente esse estado da alma, faz d'elle como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estylo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja varios poetas, um poeta dramatico escrevendo em poesia lyrica. Cada grupo de estados de alma mais approximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estylo proprio, com sentimentos porventura differentes, até oppostos, aos typicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lyrica — ou qualquer fórma literaria analoga em sua substancia à poesia lyrica — até à poesia dramatica, sem, todavia se lhe dar a fórma do drama, nem explicita nem implicitamente.

Supponhamos que um supremo despersonalizado, como Shakespeare, em vez de crear o personagem Hamlet como parte de um drama, o creava como simples personagem, sem drama. Teria escripto, por assim dizer, um drama de uma só personagem, um monologo prolongado e analytico. Não seria legitimo ir buscar a esse personagem uma definição dos sentimentos e dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que o personagem fôsse falhado, porque o mau dramaturgo é o que se revela.

Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analysar, nem importa que analyse, construi dentro de mim varias personagens distinctas entre si e de mim, personagens essas a que attribui poemas varios que não são como eu, nos meus sentimentos e idéas, os escreveria.

Assim tem estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Alvaro de Campos que ser considerados. Não ha que buscar em quaesquer d'elles idéas ou sentimentos meus, pois muitos d'elles exprimem idéas que não acceito, sentimentos que nunca tive. Ha simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.

Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnancia o poema oitavo do Guardador de Rebanhos, com a sua blasphemia infantil e o seu anti-espiritualismo absoluto. Na minha pessoa propria, e apparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasphemia, nem sou anti-espiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois elle que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como elle ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que elle, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, hystero-epileptico, ou de lhe attribuir uma tendencia hallucinatoria e uma ambição que não recúa perante o crime. Se assim é das personagens ficticias de um drama, é egualmente licito das personagens ficticias sem drama, poisque é licito porque ellas são ficticias e não porque estão num drama.

Parece excusado explicar uma coisa de si tam simples e intuitivamente comprehensivel. Succede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notavel.


Título: Dividiu Aristoteles a poesia
Heterónimo: Não atribuído
Número: 466
Página: 457 - 458
Data: 1931 (low)
Nota: [16-61r e 62r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, no conjunto "Ficções do Interludio" (2010: 454-459).