O homem, bobo da sua aspiração


O homem, bobo da sua aspiração, sombra chineza
da sua ansia inutil, segue, revoltado e
ignobil, servo das mesmas leis chimicas, no rodar
imperturbavel da terra, implacavelmente em
torno a um astro amarello, sem esperança, sem
socego, sem outro conforto que o abafo das suas illusões
da realidade e a realidade das suas illusões. Governa
stados, institue leis, gera levanta guerras; deixa de si memorias
de batalhas, versos, estatuas e edificios. A terra
esfriará sem que isso valha. Extranho a isso, extranho
desde a nascença, o sol um dia, se allumiou, deixará de
allumiar; se deu vida, dará a si a morte. Outros
systemas de astros e de satellites darão porventura
novas humanidades; outras especies de eternidades
fingidas alimentarão almas de outra especie; outras
crenças passarão em corredores longinquos da
realidade multipla. Inuteis Christos outros subirão
em vão a novas cruzes. Novas seitas secretas terão na mão
os segredos da magia ou da Kabbala. E essa magia será outra,
e essa Kabbala differente. De commum a todas essas hu-
manidades e a toda essa gente só haverá a illusão de existir
e a verdade final de deixar de existir.


O amor, porque
a gloria, porque é um nome, e não basta; o poder, porque é
um esforço, e cansa;

Só as aguas dos rios

na belleza superflua das cousas inconscientes, obedecem sem
indignidade as mesmas leis fataes que compellem
o nosso cerebro servo e de que é a filha a
propria revolta contra ellas.

A blasphemia é um acto de fé. O spiritualismo é
um produto chimico. A ave, que despreza a terra,
não despreza as leis que regem a terra e o ar. Nunca
sahimos do carcere de viver, nem com a morte,
que é a vida individual das muitas de que a nossa
unidade ficticiamente se formou.

Só uma obediencia passiva, sem revoltas nem sorrisos,
tão escrava como a revolta, e tão inevitavel como a
        , é o systema spiritual adequado á exteriori-
dade absoluta da nossa vida serva.


Identificação: bn-acpc-e-e3-21-1-145_0243_120_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-21-1-145_0244_120v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (21.4cm X 19.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Nota: , Texto escrito em recto e verso de uma folha de papel timbrado, "F. A. PESSOA | RUA DO OURO, 87, 2.º | LISBOA", com marca de água "BRITISH BANKPOST". O texto foi publicado por Rudolf Lind em 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação' (1966: 405-406) atribuído a Álvaro de Campos.
Fac-símiles: BNP/E3, 21-120.1 , BNP/E3, 21-120.2