A João de Lebre e Lima, em 3 de Maio de 1914


A propósito de tédios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num número do ano passado, de A Águia, um trecho meu chamado Na floresta do alheamento? Se não viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse em que você conheça esse trecho. É o único trecho meu publicado em que eu faço do tédio, e do sonho estéril e cansado de si próprio mesmo ao ir começar a sonhar-se, um motivo e o assunto. Não sei se lhe agradará o estilo em que o trecho está escrito: é um estilo especialmente meu, e a que aqui vários rapazes amigos, brincando, chamam "o estilo alheio", por ser naquele trecho que aparece. E referem-se a "falar alheio", "escrever em alheio", etc.

Aquele trecho pertence a um livro meu, de que há outros trechos escritos mas inéditos, mas de que falta ainda muito para acabar; esse livro chama-se Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota predominante. No trecho publicado isso nota-se. O que é em aparência um mero sonho, ou entressonho, narrado, é — sente-se logo que se lê, e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura — uma confissão sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar.


Título: A João de Lebre e Lima, em 3 de Maio de 1914
Heterónimo: Não atribuído
Número: 532
Página: 504
Data: 03-05-1914
Nota: [114(2)-68r];
Nota: Richard Zenith transcreve excertos da carta no apêndice "Excertos de algumas cartas", integradas no conjunto intitulado "Escritos de Pessoa relativos ao Livro do Desassossego" (2012: 504-506).