[Carta a João de Lebre e Lima, 3 de Maio de 1914]


                Rua Pascoal de Mello, 119, 3º, Dto.
                Lisboa, 3 de Maio de 1914.

Meu caro João:

Releve-me o ser tão pouco esthetico
o papel em que lhe escrevo. Mas é o
que tenho á mão e eu sinto absoluta
a necessidade de lhe escrever.

N'este dia de sol, claro e simples,
assaltou-me um tedio de tal maneira
profundo que não o posso exprimir se-
não expondo-lhe que sinto uma mão a
estrangular-me a alma.

Li hoje, pela não-sei-que- ésima vez,
parte do seu livro e fez-me bem, como
sempre me faz, por tão bem me fallar
do meu mal.

Excuso de empregar o vulgar "não i-
magina" para lhe descrever o abysmo de
torpor de todo o Eu em que estou cahido;
sei de sóbra que v. imagina isso muito bem,
para mal da sua felicidade.

Estou n'um d'estes momentos em que
tudo perde o sabôr a vida que tem e em
que adoece dentro de nós o nosso modo de
sentir as cousas; repare que eu digo que
adoece, não as sensações, mas o modo como ellas
são sensações.

Estou talvez fatigando-o com isto. Des-
culpe-me que o faça. Sou impellido a fa-
zel-o.


                                2.

A proposito de tedios, lembra-me per-
guntar-lhe uma cousa... Viu, n'um
numero, do anno passado, de A Aguia,
um trecho meu chamado Na floresta do
alheamento? Se não viu, diga-me. Man-
dar-lh'o-hei. Tenho immenso interesse
em que v. conheça esse trecho. É o
unico trecho meu publicado em que eu
faço do tedio, e do sonho esteril e can-
çado de si-proprio mesmo ao ir começar
a sonhar-se, um motivo e o assumpto.
Não sei se lhe agradará o estylo em que
o trecho está escripto: é um estylo
especialmente meu, e a que aqui varios
rapazes amigos, brincando, chamam "o
estylo alheio", por ser n'aquelle trecho
que apparece. E referem-se a "fallar
alheio", "escrever em alheio", etc.

Aquelle trecho pertence a um livro
meu, de que ha outros trechos escriptos mas
inéditos, mas de que falta ainda muito
para acabar; esse livro chama-se
Livro do Desassocego, por causa da
inquietação e incerteza que é a sua
nota predominante. No trecho publi-
cado isso nota-se. O que é em apparen-
cia um mero sonho, ou entresonho, narra-
do, é — sente-se logo que se lê, e deve, se
realizei bem, sentir-se atravez de toda a
leitura — uma confissão sonhada da inu-
tilidade e dolorosa furia esteril de
sonhar.


                                3.

Tenho-lhe fallado de mim demasiada-
mente. Queria ter agora, n'este momento,
ao mesmo tempo em que as estou desejan-
do, extensas novas suas. O que tem v.
feito? Tem escripto? E tem escripto
versos?

Espero para breve noticias suas. Se
me pudesse escrever, não um postal, mas
uma carta...!

Como vê pelo en-tête d'esta carta,
mudei de residência. Mudei ha trez
dias apenas. É para aqui que me
deve escrever agora.

Adeus. Um grande e fraterno a-
braço do
            muito e sempre seu

            Fernando Pessôa

                    14 de Maio.
Escripta a 3 de Maio, esta carta
vae para o correio a 14. Como v.
vê continúa aquella minha [...]
de atrazar mesmo aquillo que parece
impossivel que se atraze.

Emfim...
                FP


Identificação: bn-acpc-e-e3-114-2-1-90_0133_67-R0150 | bn-acpc-e-e3-114-2-1-90_0135_68-R0150 | bn-acpc-e-e3-114-2-1-90_0137_69-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (19.3cm X 13.7cm, 19.3cm X 13.7cm, 19.3cm X 13.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 03-05-1914
Nota: , Carta dirigida a João de Lebre e Lima, datada de 3 de maio de 1914, escrita no recto de três folhas de papel quadriculado, picotado no topo das folhas. Richard Zenith transcreve excertos desta carta no apêndice "Excertos de algumas cartas", integradas no conjunto intitulado "Escritos de Pessoa relativos ao Livro do Desassossego" (2012: 504-506).
Fac-símiles: BNP/E3, 114(2)-67r-68r-69r.1 , BNP/E3, 114(2)-67r-68r-69r.2 , BNP/E3, 114(2)-67r-68r-69r.3