Carta


          Carta

Assim soubesses tu compre-
hender o teu dever de
seres meramente o sonho
de um sonhador. Seres
apenas o thuribulo da cathe-
dral dos devaneios. Talhares
os teus gestos como sonhos, para
que fôssem apenas janellas
abertas para paysagens
novas da na tua alma. De tal
modo architectar o teu corpo
em arremêdos de sonho que
não fôra possivel ver-te
sem pensar n'outra cousa,
que lembrasses tudo menos tu
propria, que ver-te fora ouvir ouvir
musica a atravessar, somnam-
bulo, grandes paysagens de lagos
mortos, vagas florestas silencio-
sas perdidas ao fundo de outras
epocas, onde invisiveis povos
diversos vivem sentimentos que


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não temos.

Eu não te quereria para
nada senão para te não
ter. Queria que, sonhando
eu e se tu apparecesses, eu
pudesse imaginar-me ainda
sonhando — nem te vendo talvez,
mas talvez reparando que o luar
enchera de             os lagos
mortos e que eccos de canções
ondeavam subitamente na
grande floresta inexplicita,
perdida em epocas impossiveis.

A visão de ti seria o
leito onde a minha alma
adormecesse, creança doente,
para sonhar outra vez com
outro ceu. Fallares? Sim, mas
que ouvir-te fora não te
ouvir mas ver grandes pontes
ao luar ligar as duas margens
escuras do rio que vae ter
ao ancião mar / onde as cara-
vellas são novas para sempre /.



Sorrias? Eu não sabia d'isso, mas nos meus ceus interiores
andavam as estrellas. Olhavas-me dormindo. Eu não reparava n'isso
mas no barco longinquo cuja vela de sonho ia sob o luar passando longinquas marinhas.


Identificação: bn-acpc-e-e3-114-1-1-119_0153_75_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-114-1-1-119_0154_75v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (15.4cm X 9.9cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 1914 (low)
Nota: , Texto escrito em recto e verso de uma folha inteira. Este fragmento, segundo Zenith, é relacionável com o trecho "Uma Carta" (4-74), embora a destinatária seja tratada por tu e não na terceira pessoa. Também é relacionável com "Final", em que o destinatário é tratado por tu e que, segundo Zenith, é indissociável de "Uma Carta".
Fac-símiles: BNP/E3, 114(1)-75.1 , BNP/E3, 114(1)-75.2