Agir é intervir


Agir é intervir. Um braço que se estende occupa espaço e torna-se, assim, uma esculptura metaphysica. Nunca pude deixar de dar a este facto insignificante uma importancia alada sobre o quotidiano.

Nunca vi em mim senão uma romaria de inconsciencias para o outomno das minhas intenções. As longas horas que tenho passado á beira do meu correr teem-me cançados rios sobre a existência.

Com os meus passos treme a luz das estrellas. Um gesto da m[inha] mão, que me occulta a lua um momento, mostra, com este meu assombro, quanto pode realmente significar. De estes pensamentos, tornados domésticos e quotidianos ao meu escrupulo, adveio ao meu instincto que elle naufragasse no porto.

Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se. Inercia soube-me a santidade, e não-querer a ter bons costumes. Construi-me assim uma moral media do pensamento, um cuidado da comodidade e da decencia atravez do respeito do mysterio. A exaggerada consciencia, que sempre tive, dos meus momentos, doeu-me sempre a mysterio e a divino. Nunca me comprehendi, sobretudo quando me surprehendi a viver as inconsciencias dos meus instinctos e a vulgar correcção dos meus reflexos nervosos.


Título: Agir é intervir
Heterónimo: Não atribuído
Número: 583
Página: 515
Nota: [138A-21r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, no conjunto "Textos sem destinação certa inventariados fora do núcleo" (2010: 490-516).