teste - Usa Richard Zenith(214)

Outra vez encontrei um trecho meu


Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual haviam passado já quinze anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto com franceses, nunca tive exercício, portanto, daquela língua, de que me houvesse desabituado. Leio hoje tanto francês como sempre li. Sou mais velho, sou mais prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse trecho do meu passado longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje não possuo; o estilo é fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há trechos inteiros, frases completas, formas e modos de expressão, que acentuam um domínio daquela língua de que me extraviei sem que me lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me substituí dentro de mim?

Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo da inteligência, um modo de sentimento — tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?

Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito — o que é pouco para pasmar —, mas que nem me lembro de poder ter escrito — o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas — mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.