Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-74)

De repente, como se um destino


      21/2/1930.

L. do D.

De repente, como se um destino medico cirurgico magico me houvesse
operado de uma cegueira antiga com grandes resultados su-
bitos, ergo a cabeça, da minha vida anonyma, para o conhe-
cimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto te-
nho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho
sido, é uma especie de engano e de loucura. Maravilho-me
do que consegui não ver.

Extranho quanto fui do que
vejo que afinal não sou.


Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passa-
da; e noto, com um pasmo metaphysico, como todos os meus
gestos mais certos, as minhas idéas mais claras, e os meus
propositos mais logicos, não foram, afinal, mais que
bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento.


Nem sequer representei.
Representaram-me. Fui, não o actor

mas os gestos
d'elle
.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma somma
de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por
que agi d'elle para fóra, ou de um peso de circumstancias
que suppuz ser o ar que respirava. Sou, neste momento de
vêr, um solitario subito, que se reconhece desterrado onde
se encontrou sempre cidadão. No mais intimo do que pensei não fui
eu.


Vem-me, então, um terror sarcastico da vida, um
desalento que passa os limites da minha individualidade
consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi,
que existi sòmente porque enchi tempo com consciencia e
pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem accorda
depois de um somno cheio de sonhos reaes, ou a de quem é
liberto, por um terramoto, da luz pouca do carcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condemnação a
conhecer, esta noção repentina da minha individualidade
verdadeira, d' essa que andou sempre
viajando somnolentamente entre o
que sente e o que vê.

É tam difficil descrever o que se sente quando se
sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade
real, que não sei quaes são as palavras humanas com que
possa definil-o. Não sei se estou com febre, como sinto,
se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como
um viajante que de repente se encontre numa villa extranha,
sem saber como alli chegou; e occorrem-me
esses casos dos que perdem a memoria, e são outros durante
muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nas-
cença e a consciencia —, e accordo agora no meio da
ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais
firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incogni-
ta, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado
sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça
nullo e ficticio, intelligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os moveis que


me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol
pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui
um momento, com consciencia, o que os grandes homens são
com a vida. Com a vida? Recordo-lhes os actos
e as palavras, e não sei se não foram tambem tentados
vencedoramente pelo Demonio da Realidade.


Não saber de si é viver.
Saber mal de si é
pensar. Saber de si, de
repente, como neste
momento lustral,
é ter subitamente
a noção da monada
intima, da palavra
magica da alma. Mas
essa luz subita cresta
tudo, consume tudo.
Deixa-nos nús até de nós.


Foi só um momento, e vi-me.
Depois já não sei sequer
dizer o que fui.
E, por fim, tenho somno, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.