Foi-se hoje embora, disseram que definitivamente
L. do D.
Foi-se hoje embora, / diz-se que / definitivamente, para a terra que é natal d'elle, o chamado moço do escriptorio, aquelle mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte d'esta casa humana, e, portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No corredor, encontrando-nos casuaes para a surpresa esperada da despedida, dei-lhe en um abraço timidamente retribuido, e tive contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes.
Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos accidentes do convivio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra gallega que ignoro, não foi, para mim, o moço
do escriptorio: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substancia da minha vida. Fui
hoje diminuido.
Já não sou bem o mesmo. O moço do escriptorio foi-se embora.
Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escriptorio foi-se embora.
É mais pesado, mais velho, menos voluntario que me sento à carteira alta e começo a continuação da escripta de hontem.
Mas a vaga tragedia de hoje interrompe com meditações, que tenho que dominar à força, o processo automatico da escripta como deve ser. Não tenho alma para trabalhar senão porque posso com uma inercia activa ser escravo de mim. O moço do escriptorio foi-se embora.
Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu tambem serei quem aqui já não está, copiador antigo que vae ser arrumado no armario por baixo do vão da escada. Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragedia é visivel pela falta, sensivel por não merecer que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escriptorio foi-se embora.