MANEIRA DE BEM SONHAR | Adia tudo


— Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.

— Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.

— Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus actos da vida real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.

Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.

E se alguém te disser que isto é falso e absurdo, não o acredites. Mas não acredites também no que eu te digo, porque se não deve acreditar em nada.

— Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.


Título: MANEIRA DE BEM SONHAR | Adia tudo
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 494-b
Página: 444 - 445
Nota: [5-5, ms.];Richard Zenith edita este texto como parte d'O Grande Trecho 'MANEIRA DE BEM SONHAR' (2012: 443-445).;