ESTÉTICA DA GUERRA | Todas as coisas deste mundo e do outro


ESTÉTICA DA GUERRA

Todas as coisas deste mundo e do outro podem ser encaradas sob um aspecto que as revele estéticas, quer elas o sejam, quer não. É absolutamente desnecessário que uma coisa seja estética para que possa ser esteticamente estudada.

O sórdido, o mau, o violento, têm aspectos súbitos — tais que um desenho fixa ou adivinha — pelos quais assumem elegância e jeito. A maioria das coisas anda à procura de si própria, à busca do modo como deviam ser. A Natureza tem um sentimento estético imperfeito; nem sempre acerta com as frases, as cores, os sons que a revelam deveras. Muitos poentes há, muitos cantos de ave ou sussurros de arvoredo que são palpavelmente erros de gosto. O papel daquele produto doentio a que se chama um artista é dar bons exemplos à Natureza, não como queria o Cyril do primeiro diálogo das Intenções, ensinando-a a tomar determinados aspectos, mas (...)

Uma senhora disse um dia a Whistler: "Vi ontem uma paisagem que me lembrou um quadro seu"... "Sim", respondeu o pintor "a Natureza vai fazendo progressos". Há um diálogo de Oscar Wilde que podia ter saído, e talvez saiu, desta frase, desdobrando-a e concluindo-a (abrindo, como um leque, o seu sintético sentido).

A guerra tem muitos aspectos. Em um deles é uma coisa terrível e violenta: é o que toda a gente nota e esquece, senão devíamos estar tremendo do que vai por essa Europa desmantelada. Por outro jeito, a guerra é uma coisa suja; este aspecto raro ocorre a quem a imagina, e cedo a tem de esquecer quem a atravessa /com o corpo/. De outro ângulo é uma coisa grande, porque põe em fúria e expressão todas as sinistras coisas elementares dentro de nós, e é nessas que /reside/ a matéria de que as tragédias são feitas.

Nenhum destes é o seu lado estético.

O lado estético da guerra não está nos combates nem nas campanhas. Está nos preparativos.

A coisa ao mesmo tempo mais terrível, mais tenebrosa, mais leve e fútil que há na guerra é, por exemplo, reunião de uma comissão de senhoras para mandarem cigarros aos soldados. É, por exemplo, um astrólogo fazer cálculos sobre quando é que no horóscopo do Kaiser se vai dar o trânsito cujo aspecto excita os maléficos, falando tecnicamente. Porque o estético, o elegante das coisas é, por um mistério da natureza, sempre uma coisa que elas possuem e não tem relação nenhuma com a natureza delas.


Título: ESTÉTICA DA GUERRA | Todas as coisas deste mundo e do outro
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 245
Página: 213 - 214
Nota: [55A-81-82, ms.];
Nota: Apenas Teresa Sobral Cunha inclui este texto no corpus do "Livro do Desassossego". Texto retirado do corpus na edição de 2013.