O meu ideal, está claro


O meu ideal, está claro, é muito maior do que eu. Esta é a minha teoria, teoria sentimental, e (...); mas não encontro melhor, e na prática todas são más, todas, e esta, a única boa, não se pode pôr em prática. A Natureza não admite o bem.

E se não tenho apregoado esta teoria, se ninguém até hoje — absolutamente ninguém — ma tem ouvido, é porque tenho medo de mim mesmo perante ela, porque receio traí-la, por uma fraqueza ignóbil ou por uma indolência infame. É porque temo cair em contradição, não comigo mesmo, mas com as minhas opiniões, que eu nunca expus.

Não quero que se diga com razão, posto que ao mesmo tempo sem ela, que sou um traidor e um renegado. Por isso, se hoje exponho aqui estas opiniões é com esta reserva, necessária mas não prudente. O meu ideal é muito maior do que a força da minha aspiração. Desde já declaro que não digo isto porque tenha intenção de quebrar. Disse necessária, mas não prudente.

Pelo contrário, se aqui hoje venho declarar pela primeira vez os meus sentimentos, é porque estou absolutamente certo de que neste caso não cairei em contradição com eles, que neste momento não fraquejarei...

"Nem Deus, nem amo", dizia Blake! Insistindo eu, "nem servo".

"Nem amo, nem servo", repito (deixando Deus fora disto tudo, pois a religião nada tem com a política, mas sim apenas com os religiosos, com os políticos, porque são todos homens).


Título: O meu ideal, está claro
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 276
Página: 232
Nota: [138A-16 e 16a, ms.];
Nota: Apenas Teresa Sobral Cunha inclui este texto no corpus do "Livro do Desassossego". Texto retirado do corpus na edição de 2013.