A Immoralidade das biographias
A Immoralidade das biographias
O genio, o crime, e a loucura
proveem, por egual, de uma anor-
malidade,
representam, de differentes
maneiras, uma inadaptação ao meio.
Se repousam, porém, sobre um egual
fundo degenerativo, se o genio constitui,
de per si,
uma especie nosographica —
são cousas que não sabemos. Manifesta-
ção
especial de epilepsia larvar, como
precipitadamente quis Lombroso, ou
manifestação de uma dia-
these degenerativa, o certo é que o genio
é, de sua natureza, uma anormalidade.
Succede que a imaginação sim-
plista
das multidões não destrinça de
instincto entre o que na personali-
dade
do homem superior constitui, ou
representa, superioridade, e o que
nella resulta da ∧de concomitante, ou
intercorrente, anormalidade psychica,
patentemente tal. No fundo, esta
intuição expontanea é justa. Na
personalidade tudo se liga, se inter-
relaciona. Não podemos “separar”, salvo
por um processo analytico conscientemente
truncador da realidade, na personalidade
[de] Goethe, por exemplo, a modalidade
especifica da sua ideação litteraria e
a tendencia hallucinativa que, como se
sabe, obriga á autoscopia externa; nem
podemos separar na personalidade de Shakes-
peare
a intuição dramatica de, por
exemplo, a inversão sexual.
A grande multidão de fascinados
inferiores, incapazes de crear e de
, falhos de inhibição e
de senso-critico, na impossibilidade
de, com razoavel exito ∧verosimil consciencia (salvo
∧uma declarada delirio
de grandezas), imitar os poemas de
Musset ou os de Verlaine, podem
comtudo, com maior approximação,
plagiar ao primeiro o proto-cocktail
gigantesco com que se embriagava
quotidianamente e ao segundo a
∧sua incuravel vagabundagem e ammora-
lidade de degenerado typico. Quem
não pode fazer versos como Baudelaire
pode, porém, tingir os cabellos de
verde ∧como aquelle ∧desesperançado ∧infeliz ∧uma vez se
lembrou de fazer. A practica da pederastia,
embora nem sempre facil e commoda, é
contudo mais facil que a producção
de uma segunda Salomé.
As biographias dos grandes homens
realizam hoje, no sentido inverso, o
que entre os homens da Renascença
realizou a leitura de Plutarcho.
Criam um mimetismo.
O phenomeno dá-se, bem sei, não
só com os grandes homens, mas tambem com
os grandes meios. Plagia-se a "grande
vida" como os grandes homens. Mas como
a elegancia seja, em parte, uma fusão
de virtudes, prazeres, ∧e, no resto,
parte de uma educação social especial,
∧dotada quasi ∧de nascença,
Muito individuo que, se não fôra a
preoccupação litteraria, podia exercer,
competentemente, um lugar de
absoluto amanuense, ou empregado de
escriptorio à outrance, perde-se no
beco sem sahida de se publicar Oscar
Wilde pela pederastia, ou de se pro-
mover
a Baudelaire pela quota
incessante de blagues mais ou menos
inacceitaveis.
Não vêem que ∧o que é no
homem superior a inadaptação n'aquella
por sua intuição do futuro, é no segundo
a mera inadaptação ao meio; que a
ansia de celebridade do genio é a ansia
de passar aquillo para que nasceu, ao
passo que a do não passa de um
phenomeno [ileg.] de histeria.