Acontece-me ás vezes
L. do D.
Acontece-me ás vezes, e sempre que acontece é quasi de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tam terrivel da vida que não ha sequer hypothese de acto com que dominal-o. Para o remediar o suicidio parece incerto, a morte, mesmo supposta a inconsciencia, ainda pouco. É um cansaço que ambiciona, não o deixar de existir — o que pode ser ou pode não ser possivel —, mas uma coisa muito mais horrorosa e profunda, o deixar de sequer ter existido, o que não ha maneira de poder ser.
Creio entrever, por vezes, nas especulações, em geral confusas, dos indios, qualquer coisa d'esta ambição mais negativa do que o nada. Mas ou lhes falta a agudeza de sensação para relatar assim o que pensam, ou lhes falta a acuidade de pensamento para sentir assim o que sentem. O facto é que o que nelles entrevejo não vejo. O facto é que me creio o primeiro a entregar a palavras o absurdo sinistro d'esta sensação sem remedio.
E curo-a com o escrevel-a. Sim, não ha desolação, se é profunda deveras, desde que não seja puro sentimento, mas /n/ella participe a intelligencia, para que não haja o remedio ironico de a dizer. Quando a literatura não tivesse outra utilidade, esta, embora para poucos, teria.
Os males da intelligencia, infelizmente, doem menos que os do sentimento, e os do sentimento, infelizmente, menos que os do corpo. Digo "infelizmente" porque a dignidade humana exigiria o avesso. Não ha sensação angustiada do mysterio que possa doer como o amor, o ciume, a saudade, que possa suffocar como o medo physico intenso, que possa transformar como a colera ou a ambição. Mas tambem nenhuma dor das que esfacelam a alma consegue ser tam realmente dor como a dor de dentes, ou a das colicas, ou (supponho) a dor de parto.
De tal modo somos constituidos que a intelligencia que ennobrece certas emoções ou sensações, e as eleva acima de outras, as deprime tambem se extende a sua analyse á comparação entre todas.
Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assignar.
Dentro da capoeira de onde ir[á] a matar, o gallo canta hymnos á liberdade porque tem dois poleiros.