Houve tempo em que me irritavam aquellas



L. do D.

15-5-1930

Houve tempo em que me irritavam aquellas cousas que hoje me fazem sorrir. E uma d'ellas, que quasi todos os dias me lembram, é a insistencia com que os homens quotidianos e activos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem sempre o fazem, como crêem os pensadores dos jornaes, com um ar de superioridade. Muitas vezes o fazem com carinho. Mas é sempre como quem acarinha uma creança, alguem alheio á certeza e á exactidão da vida.

Isto irritava-me antigamente, porque suppunha, como os ingenuos, e eu era ingenuo, que esse sorriso dado ás preoccupações de sonhar e dizer era um effluvio de uma sensação intima de superioridade. É sòmente um estalido de differença. E, se antigamente eu considerava esse sorriso como um insulto, porque implicasse uma superioridade, hoje considero-o como uma duvida inconsciente; como os homens adultos muitas vezes reconhecem nas creanças uma agudeza de espirito superior à propria, assim nos reconhecem, a nós que sonhamos e o dizemos, uma qualquer coisa differente de que elles desconfiam como extranha. Quero crer que, muitas vezes, os mais intelligentes d'elles entrevejam a nossa superioridade; e então sorriem superiormente, para esconder que a entrevêem.

Mas essa nossa superioridade não consiste naquillo que tantos sonhadores teem considerado como a superioridade propria. O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior á realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais practico que viver, e em que o sonhador extrahe da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.

Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, valido para nós na proporção em que o pensamos valido, depende de nós a valorização. O sonhador é um emissor de notas, e as notas que emitte correm na cidade do seu espirito do mesmo modo que as da realidade. Que me importa que o papel-moeda da minha alma nunca seja convertivel em ouro, se não ha ouro nunca na alchimia facticia da vida? Depois de todos nós vem o diluvio, mas é só depois de todos nós. Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que elle lhes seja feito, e, como Machiavelli, vestem os trajos da corte para escrever bem em segredo.