Tudo quanto não é a minha alma


L. do D.

Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que o não seja, não mais que scenario e decoração. Um homem, ainda que eu possa reconhecer pelo pensamento que elle é um ente vivo como eu, teve sempre, para o que em mim, por me ser involuntario, é verdadeiramente eu, menos importancia que uma arvore, se a arvore é mais bella. Porisso senti sempre os movimentos humanos — as grandes tragedias collectivas da historia ou do que d'ella fazem — como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam nelles. Nunca me pesou o que de tragico se passasse na China. É decoração longinqua, ainda que a sangue e peste.

Relembro, com tristeza ironica, uma manifestação de operarios, feita não sei com que sinceridade (pois me pesa sempre admittir sinceridade nas coisas collectivas, visto que é o individuo, a sós comsigo, o unico ser que sente). Era um grupo compacto e solto de estupidos animados, que passou gritando coisas diversas deante do meu indifferentismo de alheio. Tive subitamente nausea. Nem sequer estavam sufficientemente sujos. Os que verdadeiramente soffrem não fazem plebe, não formam conjuncto. O que soffre soffre só.

Que mau conjuncto: Que falta de humanidade e de dôr! Eram reaes e portanto incriveis. Ninguem faria com elles um quadro de romance, um scenario de descripção. Decorriam como lixo num rio, no rio da vida. Tive somno de vel-os, nauseado e supremo.


Título: Tudo quanto não é a minha alma
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 232
Página: 257 - 258
Nota: [1-12, dact.];