Tudo quanto não é a minha alma


L. do D.


Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais
que eu queira que o não seja, não mais que scenario e decoração.
Um homem, ainda que eu possa reconhecer pelo pensamento que elle
é um ente vivo como eu, teve sempre, para o que em mim, por me
ser involuntario, é verdadeiramente eu, menos importancia que uma
arvore, se a arvore é mais bella. Porisso senti sempre os movi-
mentos humanos — as grandes tragedias collectivas da
historia ou do que d'ella fazem — como frisos coloridos, vazios
da alma dos que passam nelles. Nunca me pesou o que de tragico se
passasse na China. É decoração longinqua, ainda que a sangue e
peste.

Relembro, com tristeza ironica, uma manifestação de operarios,
feita não sei com que sinceridade (pois me pesa sempre admittir
sinceridade nas coisas collectivas, visto que é o individuo, a sós
comsigo, o unico ser que sente). Era um grupo compacto e solto de
estupidos animados, que passou gritando coisas diversas deante do
meu indifferentismo de alheio. Tive subitamente nausea. Nem sequer
estavam sufficientemente sujos. Os que verdadeiramente soffrem não
fazem plebe, não formam conjuncto. O que soffre soffre só.

Que mau conjuncto! Que falta de humanidade e de dôr! Eram
reaes e portanto incriveis. Ninguem faria com elles um quadro
de romance, um scenario de descripção. Decorriam como lixo num
rio, no rio da vida. Tive somno de vel-os, nauseado e supremo.


Identificação: bn-acpc-e-e3-1-1-89_0023_12_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.6cm X 21.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (blue-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta azul.
Data: 1931 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira.
Fac-símiles: BNP/E3, 1-12r.1