Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 27(22)-L(5)1-2)

Muito longe


Muito Longe

Era n'aquelle paiz, que vós não desconheceis, em
que sempre se sente, em torno da nossa alma, um o cahir
de folhas amarellas. Sabeis decerto que n'esse            
abandonado ha lagos mais estagnados e silenciosos do
que os outros lagos, e que á superficie d'elles
boiam, como que permanentemente, verdes folhas es-
palmadas, mais vulgares de vêr ao pé das margens, onde
se                 entre as algas, quebradas somnolenta-
mente e como que adormecidas. É o paiz, decerto
que vos não é extranho, em que ao no pôr do sol, as
horas desapparecem e o ruido do passo do tempo e
os proprios sons da natureza — zumbir de insectos, e cantos
de aves, e o murmurio fresco das arvores vagamente al-
teradas de encontro ao céu pallido nas minucias dos seus contornos. N'este paiz,
bem o sabeis, nada d'isto existe. Nem ha insectos, nem aves, nem outros seres quaesquer. Ha arvores mas não
se movem. Rios, riachos                 que sejam de agua
corrente — não os ha alli. Tudo é parado e somnolento.
O sol não nasce alli, nem é nunca meio-dia ou noite
n'aquella terra. O pôr do sol — sumido já o sol a-
baixo do horizonte acima do qual nunca esteve — é eterno
n'esse paiz. De sobre os lagos escuros e esquecidos não
sai nunca a vaga luz saudosa que levemente os
transfigura. Não ha ali ruido, nem movimento, nem
vida. Bem sabeis que as proprias arvores e heras e
                não fôram nunca sementes ou                , mas sempre
assim silenciosamente como são. Movimento nenhum? Não, ha um


só. Ruido nenhum? Não, ha um apenas. É o cahir eterno das
folhas amarellas no pallido sossego eterno.

Debalde queremos poder sonhar nymphas ou faunos entre
aquellas arvores. Não os houve nunca n'aquella terra. Como
os poderia haver? Não seria preciso que o vento acordasse,
e rios começassem a correr, e as hervas fossem verdes e as
folhas cessassem de cahir — essas folhas que não se
vêem cahir mas se sentem apenas — fechados os olhos sobre aquella
terra. Abertos, não se vêem nem se ouvem — vêem-se apenas as
folhas cahidas, amarellentas no chão.

Sim; á vista nada se move ou vive; ao ouvido apenas
o que deve ser folhas cahindo, amarellas decerto, n'aquelle
chão outomnal que nunca foi da primavera.

Sim, sim. Deve haver mais. Ha sem duvida um vento ligeiro
quando as folhas vão cahindo, cahidas, arrastadas,
paradas, revolvidas e tresmalhadas. Mas ao abrir os olhos
não se vê isto. Apenas os lagos quêdos e vagos de luz, e
sobre distantes montanhas silenciosas o sossego
eterno do dia permanentemente moribundo.

Foi esta a terra onde eu nasci.

Chamo-me o Tedio — já o deveis saber.

Nasci n'essa terra sim, mas não sei porquê nem como,
nem me importa saber. Basta-me que tenha eternamente
esta nostalgia d'essa patria. O mais — nada sei. Sei que nasci
n'essa terra, mas não me lembro de alli ter vivido nunca. Ao
pé d'aquelles lagos nunca decerto eu estive. Aquelle pôr do
sol, lembro-me d'elle mas não o conheço... E o cahir de


folhas amarellas ao chão? Não sei. Não o vi nunca,
mas ouvi-o, e onde havia de ser senão n'essa terra
quando eu dormia nem sei mesmo se n'ella se longe
d'ella, se de todo dormindo, se quasi dormindo apenas.

Conheceis decerto esta terra por minha. Sentis talvez
como eu a nostalgia d'ella; e como eu talvez não desejeis
conhecel-a ou vel-a. Vejo-a sempre e doe-me o vel-a
mas não a quero, e desejo não a vêr. Mas lembro-me
sempre d'ella; não ouso querer esquecel-a.

Ainda que silenciosa e inerte ella não é sossegada. Nada
nos diz de novo. É mais quieta do que uma casa deve sêr.
Parece um universo morto; uma terra a pensar; ha alli
pouco e muito para a alma, de menos e de mais
para o sonho.

Inclinae a cabeça sobre a mão. Pensae quanto é dese-
javel para não viver n'ella esta terra extranha onde eu
nasci. Não a podeis esquecer, nem querer, nem de qual-
quer modo sentir para com ella. Desejaes como eu,
não é verdade? — dormir e não saber do mais.
Mas, como eu, não podeis dormir. Meditaes commigo
eternamente n'aquela paysagem eterna. Fechemos os
olhos ao menos; ouçamol-o, o cahir leve das folhas ama-
rellas no entenebrecido chão. Como elas cahem e rastejam
em torno da nossa alma! Fechados ou abertos os olhos, elas cahem
sempre, bem ouvidas ou mal, tenues ou
menos tenues. No mais escuro do fechar os
olhos ouve-se leve o tal vento que as arrasta.

Que tristeza a minha, por ter nascido n'essa terra; e a vossa tambem, por alli não ter
nascido!