Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-31)

Sempre me tem preoccupado


L. do D.

Sempre me tem preoccupado, naquellas horas occa-
sionaes de desprendimento em que tomamos consciencia de
nós mesmos como individuos que somos outros para os outros,
a imaginação da figura que farei physicamente, e até moral-
mente, para aquelles que me contemplam e me fallam, ou to-
dos os dias ou por acaso.

Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente
realidades mentaes, e aos outros como directamente realidades physicas;
vagamente nos consideramos como gente physica, para effeitos
nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como
realidades mentaes, mas só no amor ou no conflicto tomamos
verdadeira consciencia de que os outros teem sobretudo alma,
como nós para nós.

Perco-me, porisso, ás vezes, numa imaginação futil
de que especie de gente serei para os que me vêem, como é
a minha voz, que typo de figura deixo escripta na memoria
involuntaria dos outros,
de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha
vida apparente, se gravam nas retinas da interpretação a-
lheia. Não consegui nunca ver-me de fóra. Não ha espelho
que nos dê a nós como fóras, porque não ha espelho que nos
tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colloca-
ção do olhar e do pensar. Se eu fosse actor prolongado de cinema, ou
gravasse em discos audiveis a minha voz alta, estou certo
que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado
de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se
grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos
da minha consciencia de mim.

Não sei se os outros serão assim, se a sciencia
da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a
si mesmo que instinctivamente se consegue um alheamento e
se pode participar da vida como extranho á consciencia;
ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de
todo a bruteza de não serem senão elles, vivendo exterior-
mente por aquelle milagre pelo qual as abelhas formam so-
ciedades mais organizadas que qualquer nação, e as for-
migas communicam entre si com uma falla de antennas minimas
que excede nos resultados a nossa complexa ausencia de
nos entendermos.

A geographia da consciencia da realidade é de uma
grande complexidade de costas, accidentadissima de montanhas
e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espe-
cie de mappa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de
Gulliver, brincadeira da exactidão inscripta num livro iro-
nico ou fantasista para gaudio de entes superiores, que sa-
bem onde é que as terras são terras.


Tudo é complexo para quem pensa, e sem duvida o
pensamento o torna mais complexo por volupia propria.
Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua
abdicação com um vasto programma de comprehender, ex-
posto, como as razões dos que mentem, com todos os
pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar
da terra, a raiz da mentira.

Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de
qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo,
nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extra-
viadas da rua larga, vegetam nos quintaes dos deuses
exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio,
na noite em que conclúo sem fim estas considerações
sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de
uma alma humana, orphã, de antes dos astros, das gran-
des razões do Destino.