Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-30)

Quando outra virtude não haja em mim


L. do D.

Quando outra virtude não haja em mim, ha pelo menos
a da perpetua novidade da sensação liberta.

Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de re-
pente nas costas do homem que a descia adeante de mim. Eram
as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato
modesto num dorso de transeunte occasional. Levava uma pasta velha
debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no rythmo de
andando, um guarda chuva enrolado, que trazia pela curva na
mão direita.

Senti de repente uma coisa parecida com ternura
por esse homem. Senti nelle a ternura que se sente pela com-
mum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de fa-
milia que vae para o trabalho,
pelo lar
humilde
e alegre d'elle,
pelos prazeres
alegres e tristes
de que forçosa-
mente

se compõe a
sua
vida
pela innocencia de viver sem
analyzar, pela naturalidade animal d'aquellas costas vestidas.

Volvi os olhos para as costas do homem, janella por onde vi estes pensamentos.

A sensação era exactamente identica áquella que nos
assalta perante alguem que dorme. Tudo o que dorme é creança
de novo. Talvez porque no somno não se possa fazer mal, e se
não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egois-
ta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre
matar quem dorme e matar uma creança não conheço differença
que se sinta.

Ora as costas d'este homem dormem. Todo elle, que
caminha adeante de mim com uma passada egual á minha, dorme.
Vae inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dor-
mimos. Toda a vida é um somno. Ninguem sabe o que faz, nin-
guem sabe o que quere, ninguem sabe o que sabe. Dormimos a
vida, eternas creanças do Destino. Porisso sinto, se penso
com esta sensação, uma ternura informe e immensa por toda a
humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos,
por tudo.

É um humanitarismo directo, sem conclusões nem pro-
positos, o que me assalta neste momento. Soffro uma ternura
como se um deus visse. Vejo-os a todos atravez de uma compai-
xão de unico consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo huma-
nidade. O que está tudo isto a fazer aqui?

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Todos os movimentos e intenções da vida, desde a
simples vida dos pulmões até á construcção de cidades e a
fronteiração de imperios, considero-os como uma somnolencia,
coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente
no intervallo entre uma realidade e outra realidade, entre
um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguem abstractamen-
te materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como so-
bre os bons, communs no somno em que são meus. Enterneço-me
com uma largueza de coisa infinita.


Desvio os olhos das costas do meu adeantado, e pas-
sando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua,
a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio
dos hombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo
que elle; todas estas raparigas que fallam para o atelier, es-
tes empregados jovens que riem para o escriptorio, estas
creadas de seios que regressam das compras pesadas, estes
moços dos primeiros fretes — tudo isto é uma mesma inconscien-
cia diversificada por caras e corpos que se distinguem, como
fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos
da mão de quem é invisivel. Passam com todas as attitudes
com que se define a consciencia, e não teem consciencia de
nada, porque não teem consciencia de ter consciencia. Uns
intelligentes, outros estupidos, são todos egualmente estu-
pidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma edade. Uns
homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não ex-
iste.