A idéa de viajar seduz-me


L. do D.

A ideia de viajar seduz-me por translacção, como se fôsse a idéa propria para seduzir alguem que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tedio colorido, a imaginação accordada; esbóço um desejo como quem já não quere fazer gestos, e o cansaço antecipado das paysagens possiveis afflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.

E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Sonho uma vida erudita, entre o convivio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contradictorios na contradicção dos meditadores e dos que quasi pensaram, que são a maioria dos que escreveram. Mas só a idéa de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o facto physico de ter que ler annula-me a leitura... Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso ás duas cousas nullas em que estou certo, de nullo tambem que sou — á minha vida quotidiana de transeunte incognito, e aos meus sonhos como insomnias de acordado.

E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sylphide que me é propria, aquella, coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar.


Título: A idéa de viajar seduz-me
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 400
Página: 146
Nota: [1-41, dact.];