Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-41r)

A idéa de viajar seduz-me


L. do D.



A idéa de viajar seduz-me por translação, como se
fôsse a idéa propria para seduzir alguem que eu não fosse.
Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento
de tedio colorido, a imaginação accordada; esbóço um dese-
jo como quem já não quere fazer gestos, e o cansaço anti-
cipado das paysagens possiveis afflige-me, como um
vento torpe, a flor do coração que estagnou.

E como as viagens as leituras, e como as leituras
tudo... Sonho uma vida erudita, entre o convivio mudo dos
antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções
alheias, enchendo-me de pensamentos contradictorios na
contradicção dos meditadores e dos que quasi pensaram, que
são a maioria dos que escreveram. Mas só a idéa de ler se
me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer;
o facto physico de ter que ler annula-me a leitura...
Do mesmo modo se me estiola a idéa
de viajar se acaso me approximo de
onde possa haver embarque. E
regresso ás duas cousas nullas em que estou certo, de nul-
lo tambem que sou — á minha vida quotidiana de transeunte
incognito, e aos meus sonhos como insomnias
de acordado.

E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa
se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo
dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sylphide
que me é propria, aquella, coitada que seria talvez sereia
se tivesse aprendido a cantar.