Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-81r-82r)

Não comprehendo senão como


L. do D.

Não comprehendo senão como uma espe-
cie de falta de aceio esta inerte permanencia
em que jazo da minha mesma e egual plana vida, ficada
como pó ou porcaria na superficie de si que é toda ella. de nunca mu-
dar.

Assim como lavamos o corpo,
deveriamos lavar o destino, mudar de vida estar como
mudamos de roupa — não para salvar a vida, como
comemos e dormimos, mas por aquelle respeito alheio
por nós mesmos, a que propriamente chamamos aceio.

Ha muitos em quem o desaceio não é
uma disposição da vontade, mas um encolher de
hombros da intelligencia. (E) Ha muitos em quem
o apagado e o mesmo da vida não é uma forma
de a quererem, ou uma natural conformação
com o não tel-a querido, mas um apagamento da intel-
ligencia de si mesmos, uma ironia um desprezo automatica do conhecimento.

Ha porcos que repugnam a sua propria
porcaria, mas se não afastam d'ella por aquel-
le mesmo extremo de um sentimento, pelo qual
o apavorado não se afasta do perigo. Ha porcos
de destino, como eu, que se não afastam da ba-
nalidade quotidiana por essa mesma attracção
da propria impotencia. São aves fascinadas
pela ausencia de serpente pelo pensamento da serpente; moscas que pairam
nos troncos sem ver nada, até chegarem ao al-
cance viscoso da lingua do camaleão.

Assim passeio lentamente a minha in-
consciencia consciente, no meu tronco de arvo-
re do usual. Assim passeio o meu destino que
anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue,
pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia
senão estes breves commentarios, que faço a dos
proposito arredores d'ella. Contento-me com a minha cella
ter vidraças por dentro das grades, e escrevo
nos vidros, no pó do necessario, o meu nome
em lettras grandes, assignatura quotidiana da
minha escriptura com a morte.


Com a morte? Não, nem com a morte. Quem
vive como eu não morre: acaba, murcha, desve-
geta -se. O logar onde esteve fica sem elle alli
estar, a rua por onde andava fica sem elle
lá ser visto, a casa onde morava é habitada
por não-elle. É tudo, e chamamos-lhe o nada;
mas nem essa tragedia da negação podemos re-
presentar com applauso, pois
nem ao certo sabemos se é nada, vegetaes da verdade
como da vida, pó que tanto está por dentro
como por fóra das vidraças, netos
do Destino e enteados de Deus, que casou com
a Noite Eterna quando ella enviuvou
do Chaos que nos procreou de quem verdadeiramente somos filhos.
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Partir da Rua dos Douradores
para o Impossivel... Erguer-
me da carteira para o
Ignoto... Mas isto inter-
seccionado com a Razão
— O Grande Livro como dizem
os francezes.