Coisas de nada, naturaes da vida


L. do D.

Coisas de nada, naturaes da vida,
insignificancias do usual e do reles,
poeira que sublinha com um traço
apagado fininho tremidinho e grotesco a sordidez
e a vileza da minha vida humana.

— O Caixa aberto deante
dos olhos cuja vida sonha
com todos os orientes;
a piada inoffensiva do
chefe do escriptorio que offende
todo o universo; o avisar
o patrão que telephone,
que é a amiga, por
nome e dona, no
meio da medi-
tação do periodo
mais insexual
de uma theoria
esthetica e
inutil.

Mas todos os que
sonham, ainda que
não sonhem em
escriptorios da Baixa,
nem deante de
uma escripta
de armazem de
fazenda — todos teem
um Caixa deante
de si — seja a mulher
com quem casaram,
seja a administração da
fortuna que lhes vem
por herança, seja o que
fôr, logo que
positivamente seja.

Todos teem um
chefe de escriptorio,
com a piada sempre
inopportuna, e a
alma fóra do
universo em
seu conjunto.
Todos teem o
patrão, e a
amiga do patrão,
e a chamada ao
telephone no momento sempre
improprio
em que a tarde
admiravel desce
e as amantes
antes descobertas
como amantes
avisam pela
linha da amiga
que está
tomando o
chá chic
como as outras senhoras.

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A Viagem na Cabeça
Do meu quarto andar sobre o
infinito, no plausivel intimo da
tarde que acontece, á janella
para o começo das estrellas, meus
sonhos vão por accordo de
rythmo com distancia
exposta para as viagens aos
paizes incognitos, ou suppostos,
ou sòmente impossiveis.


Todos nós, que sonhamos e
pensamos, somos ajudantes de
guarda livros dum Armazem de
fazendas, ou de outra qualquer
fazenda, em uma Baixa
qualquer. Escripturamos
e perdemos; sommamos e
passamos; fechamos o
balanço e o saldo invisivel é
sempre contra nós.

Escrevo sorrindo com as
palavras, mas o meu
coração está como se
se pudesse partir quebrar, quebrar partir,
como as cousas que se
quebram, em fragmentos,
em cacos, em lixo, que
o caixote leva num gesto de
por cima dos hombros para
o carro eterno de todas
as Camaras Municipaes.


Depois os amigos, bons rapazes, bons ra-
pazes, tam agradavel estar fallando com
elles, almoçar com elles, jantar com el-
les, e tudo, não sei como, tam sordido,
tam reles, tam pequeno, sempre no arma-
zem de fazendas ainda que na rua, sempre
deante do livro caixa ainda que no es-
trangeiro, sempre com o patrão ainda que
no infinito.




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E tudo espera, aberto e decorado, o
Rei que virá, e já chega, que a poeira
do cortejo é uma nova nevoa no oriente
lento, e as lanças luzem já na distancia
com uma madrugada sua.


Identificação: bn-acpc-e-e3-1-1-89_0144_71v_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-1-1-89_0143_71_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-1-1-89_0145_71a_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.8cm X 21.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho misto, manuscrito a lápis e datiloscrito a tinta preta.
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho misto, manuscrito a lápis e datiloscrito a tinta preta.
Data: 1929 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de uma folha inteira dobrada em bifólio. Este testemunho é tratado como um único texto na edição de Jacinto do Prado Coelho, dois textos nas edições de Teresa Sobral Cunha e de Richard Zenith, e três textos na edição de Jerónimo Pizarro. A ordenação interna dos parágrafos varia consoante as transcrições. Numa das páginas do bifólio consta ainda, datilografado a tinta roxa, o seguinte texto: "Álvaro de Campos. / Ode á Realidade das Coisas. (?) / A realidade anaphrodisiaca. / Aconteça o que acontecer, aconteceu quando acontecer." Pizarro transcreve-o como anexo ao texto 185 (2010: 757).
Fac-símiles: BNP/E3, 1-71-71a.1 , BNP/E3, 1-71-71a.2 , BNP/E3, 1-71-71a.3