O patrão Vasques


L. do D.

O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexpli-
cavelmente, a hypnose do patrão Vasques. Que me é esse ho-
mem, salvo o obstaculo occasional de ser dono das minhas
horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fal-
la-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de pre-
occupação desconhecida em que não falla bem a alguem. Sim,
mas por que me preoccupa? É um symbolo? É uma razão? O que é?

O patrão Vasques. Lembro-me já d'elle no futuro
com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei soce-
gado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa,
fruindo um socego onde não farei a obra que não faço ago-
ra, e buscarei, para a continuar a não ter feito, descul-
pas diversas d'aquellas em que hoje me esquivo a mim. Ou es-
tarei internado num asylo de mendicidade, feliz da derrota
inteira, mixturado com a ralé dos que se julgaram genios
e não foram mais que mendigos com sonhos, juncto com a
massa anonyma dos que não tiveram poder para vencer nem
renuncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver,
recordarei com saudade o patrão Vasques, o escriptorio da
Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será
para mim como a recordação dos amores que me não foram ad-
vindos, ou dos triumphos que não haveriam de ser meus.

O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo
hoje de aqui mesmo — estatura media, atarracado, grosseiro
com limites e affeições, franco e astuto, brusco e affa-
vel — chefe, àparte o seu dinheiro, nas mãos cabelludas e
lentas, com as veias marcadas como pequenos musculos colo-
ridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas
e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita
a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar energico,
os seus olhos a pensar para dentro coisas de fóra, recebo
a perturbação da sua occasião em que lhe não
agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um
sorriso amplo e humano, como o applauso de uma multidão.

Será, talvez, porque não tenho proximo de mim
figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, mui-
tas vezes, essa figura commum e até ordinaria se me emma-
ranha na intelligencia e me distrahe de mim. Creio que ha
symbolo. Creio ou quasi creio que algures, em uma vi-
da remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais
importante do que é hoje.



Identificação: bn-acpc-e-e3-1-1-89_0148_73_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.5cm X 21.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta.
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira.
Fac-símiles: BNP/E3, 1-73r.1