Pedi tam pouco à vida pouco


Pedi tam pouco á vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma restea de parte do sol, um campo [...], um bocado de socego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem elles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a sombra não por falta de boa alma mas para não ter que desabotoar o casaco [...]

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, apparentemente tam pouca cousa, não incarna a substancia de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciencia de milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano ao sonho inutil, à esperança sem vestigios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciencia d'elle. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma especie de oração, uma similhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da intelligencia... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com somno; olho, sobre o papel meio escripto, a vida vã sem beleza e o cigarro barato [...] sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa [...]


Título: Pedi tam pouco à vida pouco
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 89
Página: 94
Nota: [1-79v, ms., pt., acr. ms. a 2-13];
Nota: Anota o editor: "Trata-se da parte manuscrita de um texto dactilografado (1ª versão do documento 2-13) que parece preparado para publicação".