Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(81)

Hoje, em um dos devaneios sem proposito


Hoje, em um dos devaneios sem proposito nem dignidade que constituem grande parte da substancia espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem offerecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intellectual do meu ser.

Mas de repente, e no proprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio do dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstanciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem comprehender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com elles todos, que o separar-me d'elles era uma metade e similhança da morte.

Aliás, se amanhã me apartasse de elles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria — porque a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria — porque de outro me haveria de vestir?

Todos temos o patrão Vasques, para uns visivel, para outros invisivel. Para mim chama-se realmente Vasques, e é um homem sadio, agradavel, de vez em quando brusco mas sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes genios e a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a ansia de maior riqueza, a gloria, a immortalidade... Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratavel, nas horas difficeis, que todos os patrões abstractos do mundo.

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, socio de uma firma que é prospera por negocios com todo o Estado: "você é explorado, Borges" [sic]. Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossivel.

Ha os que Deus mesmo explora, e são prophetas e santos na vacuidade do mundo.

E recolho-me, como ao lar que os outros teem, á casa alheia, escriptório amplo, da Rua dos Douradores. Achego- me á minha secretaria como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até ás lagrimas, pelos meus livros de outros em que escripturo, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sergio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar — ou talvez, tambem, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dal-o ao pequeno aspecto do meu tinteiro como á grande indifferença das estrellas.