OUTRO TRECHO
DO "LIVRO DO DESASOCEGO", COMPOSTO POR BERNARDO SOARES,
AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA
Tenho deante de mim as duas paginas grandes do livro pesado;
ergo da sua inclinação na carteira velha, com olhos cansados, uma alma
mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa,
o armazem, até á Rua dos Douradores, infileira as prateleiras regu-
lares, os empregados regulares, a ordem humana e o socego do vulgar.
Na vidraça ha o ruído do diverso, e o ruido diverso é vulgar, como o
socego que está ao pé das prateleiras.
Baixo olhos novos sobre as duas paginas brancas, em que os meus
numeros cuidadosos puzeram resultados da sociedade. E, com um sor-
riso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas paginas
com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus tra-
ços á regua e de lettra, inclue tambem os grandes navegadores, os gran-
des santos, os poetas de todas as eras, todos elles sem escripta, a vasta
prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.
No proprio registro de um tecido que não sei o que seja se me abrem
as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Persia, que não é de
um logar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro
verso, um apoio longinquo para o meu desasocego. Mas não me enga-
no, escrevo, sommo, e a escripta segue, feita normalmente por um em-
pregado d'este escriptorio.
Fernando Pessoa.