Caminhavamos, juntos e separados


L. do D.

28-11-1932

Caminhavamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque unisonos, na macieza estallante das folhas, que juncavam, amarellas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam tambem disjunctos porque eramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não eramos pisava unisono o mesmo solo ouvido.

Tinha entrado já o principio do outomno, e, além das folhas que pisavamos, ouviamos cahir continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde iamos ou haviamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sitio e logar para os que, como nós, não tinhamos por vida senão o caminhar unisono e diverso sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outomno todos os outomnos, na floresta symbolica e verdadeira.

Que casas, que deveres, que amores haviamos largado — nós mesmos o não saberiamos dizer. Não eramos, nesse momento mais que caminhantes entre o que esqueceramos e o que não sabiamos, cavalleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabiamos se partiamos, se chegavamos. E sempre, em torno nosso, sem logar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.

Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem elle prosseguiria. A companhia que nos faziamos era uma especie de somno que cada um de nós tinha. O som dos passos unisonos ajudava cada um a pensar sem o outro, e os proprios passos solitarios tel-o-hiam dispertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos unisonos seguiam constantes, e em torno do que ouviamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas cahindo, na floresta tornada tudo, na floresta egual ao universo.

Quem eramos? Seriamos dois ou duas formas de um? Não o sabiamos nem o perguntavamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhavamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, eramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros unisonos e interminaveis sobre folhas mortas, ouvidores anonymos e impossiveis de folhas cahindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incognito, um murmurio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquicio, uma duvida, um proposito que findara, uma illusão que nem fôra — a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual d'elles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragedia de não haver nunca mais do que o outomno e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre cahidas ou cahindo. E sempre, como se porcerto houvesse fóra um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silencio rumoroso da floresta.


Título: Caminhavamos, juntos e separados
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 253
Página: 288 - 289
Data: 28-11-1932
Nota: [2-22, dact.];