Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-22)

Caminhavamos, juntos e separados


L. do D.

Caminhavamos, juntos e separados, entre os desvios
bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de
nós, iam unidos, porque unisonos,

na macieza estallante das folhas, que juncavam, amarel-
las e meio-verdes, a irregularidade do chão.
Mas iam tambem disjunctos porque
eramos dois pensamentos, nem havia entre nós
de commum senão que o que não eramos pisava unisono o
mesmo solo ouvido.

Tinha entrado já o principio do outomno, e, além das
folhas que pisavamos, ouviamos cahir continuamente, no
acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons
de folhas, por toda a parte onde iamos ou haviamos ido.
Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas.
Bastava, porém, como sitio e logar para os que, como nós,
não tinhamos por vida senão o caminhar unisono e diverso
sobre um solo mortiço. Era — creio — o fim de um dia, ou
de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num ou-
tomno todos os outomnos, na floresta symbolica e verdadeira.

Que casas, que deveres, que amores haviamos largado —
nós mesmos o não saberiamos dizer. Não eramos, nesse mo-
mento mais que caminhantes entre o que esqueceramos e o que
não sabiamos, cavalleiros a pé do ideal abandonado. Mas
nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som
sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser
da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o cami-
nho ou porque o caminho, não sabiamos se partiamos, se che-
gavamos. E sempre, em torno nosso, sem logar sabido ou
queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de
tristeza a floresta.

Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de
nós sem elle prosseguiria. A companhia que nos fazia-
mos era uma especie de somno que cada um de nós tinha. O
som dos passos unisonos ajudava cada um a pensar sem o ou-
tro, e os proprios passos solitarios tel-o-hiam dispertado.
A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse
falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade,
nem acabava a floresta. Nossos passos unisonos seguiam
constantes, e em torno do que ouviamos das folhas pisadas
ia um som vago de folhas cahindo, na floresta tornada tudo,
na floresta egual ao universo.

Quem eramos? Seriamos dois ou duas fórmas de um? Não
o sabiamos nem o perguntavamos. Um sol vago devia existir,
pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir,
pois caminhavamos. Um mundo qualquer devia existir, pois ex-
istia uma floresta. Nós, porém, eramos alheios ao que fosse


ou pudesse ser, caminheiros unisonos e interminaveis sobre
folhas mortas, ouvidores anonymos e impossiveis de folhas
cahindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do
vento incognito, um murmurio, ora alto ora baixo, das folhas
presas, um resquicio, uma duvida, um proposito que fin-
dara, uma illusão que nem fôra — a floresta, os dois cami-
nheiros, e eu, eu, que não sei qual d'elles era, ou se era
ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à trage-
dia de não haver nunca mais do que o outomno e a floresta,
e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre cahi-
das ou cahindo. E sempre, como se porcerto houvesse fóra
um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no si-
lencio rumoroso da floresta.

                                  28/11/1932.