Tudo quanto de desagradavel


L. do D.

Tudo quanto de desagradavel nos succede na vida — figuras ridiculas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que cahimos de qualquer das virtudes — deve ser considerado como meros accidentes externos, impotentes para attingir a substancia da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou callos, da vida, coisas que nos incommodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que soffrer a nossa existencia organica ou que preoccupar-se o que ha de vital em nós.

Quando attingimos esta attitude, que é, em outro modo, a dos mysticos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrario de nós e porisso o nosso inimigo.

Disse Horacio, fallando do varão recto, que ficaria impavido ainda que em torno d'elle ruisse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impavidos — não porque sejamos justos mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para ellas somos.

A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.


Título: Tudo quanto de desagradavel
Heterónimo: Não atribuído
Número: 409
Página: 406
Data: 1932 (low)
Nota: [2-24];