Tudo quanto de desagradavel


L. do D.

Tudo quanto de desagradavel nos succede na vida — figuras ridiculas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que cahimos de qualquer das virtudes — deve ser considerado como meros accidentes externos, impotentes para attingir a substancia da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou callos, da vida, coisas que nos incomodam nos são externas ainda que nossas, ou que só tem que suppor a nossa existencia organica ou que preocupar-se o que ha de vital em nós.

Quando attingimos esta attitude, que é, em outro modo, a dos mysticos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrario de nós e porisso o nosso inimigo.

Daí Horacio, fallando do varão justo, que ficaria impavido ainda que em torno d'elle ruisse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impavidos — não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para ellas somos.

A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.


Título: Tudo quanto de desagradavel
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 412
Página: 156 - 157
Nota: [2-24, ms.];