Descobri que penso sempre


L. do D.

Descobri que penso sempre, e attendo sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, supponho, serão um pouco assim. Ha certas impressões tam vagas que só depois, porque nos lembramos d'ellas, sabemos que as tivemos; d'essas impressões, creio, se formará uma parte — a parte interna, talvez — da dupla attenção de todos os homens. /Succede commigo que teem egual relevo as duas realidades a que attendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragedia, e a comedia d'ella./

Escrevo attentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a historia inutil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com egual attenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não ha. As duas coisas estão egualmente nitidas, egualmente visiveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia commercial de Vasques & Ca., e o convez onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos intersticios das taboas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas sahidas dos que socegam na viagem.

(Se eu fôr atropelado por uma bicycleta de creança, essa bicycleta de creança torna-se parte da minha historia.)

Intervem a saliencia da casa de fumo; por isso só as pernas se veem.

Avanço a penna para o tinteiro e da porta da casa de fumo — [...] mesmo ao pé de onde sinto que estou — sahe o vulto do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito [...] Começo um outro lançamento. Tento ver por que ia enganado. É a debito e não a credito a conta do Marques (Vejo-o gordo, amavel, piadista e, num momento, o navio desapparece [?]).


Título: Descobri que penso sempre
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 118
Página: 121 - 122
Nota: [2-62, misto];