Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-62)

Descobri que penso sempre


L. do D.

Descobri que penso sempre, e attendo sempre, a
duas coisas no mesmo tempo. Todos, supponho, serão um pouco
assim. Ha certas impressões tam vagas que
só depois, porque nos lembramos d'ellas, sabemos que as ti-
vemos; d'essas impressões, creio, se formará
uma parte — a parte interna, talvez — da dupla attenção de
todos os homens. Succede commigo que teem egual relevo as
duas realidades a que attendo. Nisto consiste a minha ori-
ginalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragedia, e a
comedia d'ella.

Escrevo attentamente, curvado sobre o livro em
que faço a lançamentos a historia inutil de uma firma obs-
cura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com egual
attenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não ha.
As duas coisas estão egualmente nitidas, egualmente visiveis
perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas
pautadas, os versos da epopeia commercial de Vasques & Ca.,
e o convez onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta
alcatroada dos intersticios das taboas, as cadeiras longas
alinhadas, e as pernas sahidas dos que socegam na viagem.


Intervem a saliencia da casa de fumo; por isso
só as pernas se veem.


Se eu fôr atropelado por uma
bicycleta de creança, essa bicycleta
de creança torna-se parte da
minha historia.

Intervem a saliencia da casa de fumo; por isso só as pernas se veem.


Avanço a penna para o tinteiro e da
porta da casa de fumo — aqui mesmo ao pé
de onde sinto que estou — sahe o
vulto do desconhecido. Vira-me as
costas e avança para os outros. O
seu modo de andar é lento e as ancas
não dizem muito. É inglez. Começo
um outro lançamento. Tanto vi que
me ia enganando. É a debito e não a credito a
conta do Marques. ( Vejo-o,
gordo, amavel, piadista, e, num
momento, o navio desapparece.)