Leitura Crítica 2 - Usa Jacinto do Prado Coelho(190)

Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa


L. do D.

Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instincto de perfeição deveria inhibir-me de acabar; deveria inhibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um producto, em mim, não de uma applicação da vontade, mas de uma cedencia d'ella. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.

A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paysagem, que de algum modo se integra no schema, real ou supposto, das minhas impressões, é que essa paysagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotencia creadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas commigo que formam as palavras d'este livro, de fallar de repente com outra pessoa, e dirijo-me á luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tel-a de lado; ao agitar brando das arvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janellas por lettras onde o sol morto doira gomma humida.

Porque escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silencio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o exforço, e gosam a gloria na pelliça.

Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vicio que desprezo e em que vivo. Ha venenos necessarios, e ha-os subtilissimos, compostos de ingredientes da alma, hervas colhidas nos recantos das ruinas dos sonhos, papoulas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas longas de arvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernaes da alma.

Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incognito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja agua sumida nunca mais regressa ao mar.